quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

COVARDIA

Cresceu dando murro em ponta de faca. Que a vida nunca lhe deu moleza, nem um copo de água fresca. Filho de prostituta de rua e de incerto pai viciado em baralho, cachaça e mulher de zona, vivia solto nas ruas e praças feito cachorro sem dono, esmolando, implorando, furtando ninharia. E dormia nas calçadas porque no casebre o que precisava não havia.

Mais taludo, até que deu para andar na linha. Foi trabalhar em obra, misturando cimento, padiolando tijolo, empurrando carrinho de mão. E por lá pernoitava de favor. O vigia se fazia que não enxergava. Foi duas vezes na igreja, se confessou com o padre, tentou aprender a rezar. Deu de costas para o altar: foi embora por falta de milagre.

Virou homem de rosto duro, corpo forte, atarracado. De poucas palavras e nenhum sorriso. Ganhou a alcunha de Bruto, único orgulho que sentia. Ignoravam seu nome, José, nas obras em que trabalhava. Valia o apelido, e pronto. Nem sequer sabia se possuía sobrenome e data de nascimento, muito menos quantos dentes inteiros sobrara na boca; pior ainda, se era alma aquela coisa que lhe batia por dentro. No abandono, via-se como se fosse apenas um bicho peludo que ainda se mexia, tal um cão, um gato, um morcego, um rato. Machucava a convicção que gente jamais seria.

De fato, muito bruto tornou-se o Bruto. Cresceu descrente, desconfiado, estúpido. Quase uma fera de tão valente. Revolta das brabas fervendo nos intestinos. Olhar arisco, enviesado, saindo espremido pelo rabo do olho. Para cometer um crime dos graúdos faltava pouco, que dos pequenos e médios fazia coleção. Prometia, por um desagrado qualquer, puxar a peixeira, mestre nesta arma que era. Na verdade devolvia para o mundo a amargura que o mundo lhe presenteou. Olho por olho, dente por dente da lei de Talião que nunca ouvira falar; único idioma que muito bem entendia. Rudeza viva atrás de vingança.

Certa feita, domingo de tarde, acordou revoltado porque lembrou não ter pai nem mãe que prestasse, nem mulher para se deitar, filho nenhum para acariciar. Derrotado, pensou em suicídio. Faltou coragem. Covardia nojenta. Ressaca do inferno.

Anoiteceu, saiu para encher a cara, desta vez precisando arrumar encrenca. Alguém seria escolhido para aplacar aquela agonia sem fim. Ajeitou a carneadeira na cintura por baixo da camisa e se mandou para a espelunca fedorenta do boteco do Ananias. Só ralé bebendo cachaça, discutindo porcaria de assunto.

Lá pelo quinto ou sexto liso de pura encasquetou com um mulato com talho de meio palmo na cara. Disse, com a faca presa na mão, assim do nada para o negro: “ - vou te cortar no outro lado. Assim tu fica parelho!” O crioulo, forte como um búfalo, que para flor também não servia, respeitada autoridade no uso do ferro branco, deu passo e meio para trás, puxou da adaga que brilhou na fraca luz enuviada de fumaça e partiu para cima do Bruto. A assistência abriu um clarão. Afastaram mesas e cadeiras e apostaram forte no Bruto.

Foi mais fácil do que imaginava. O negro, num rápido movimento, ameaçou atacar por baixo, o Bruto se abaixou para defender as partes e levou bem no meio do peito, de baixo para cima, um pouquinho para a esquerda, a punhalada fatal.

Caiu no chão amolecido. Antes do último suspiro, com uma ruguinha de sorriso no canto da boca, olhou sereno no rumo do mulato e disse com a voz pastosa: “ - obrigado, negro velho. Tinha que ser hoje. Eu não aguentava mais esta vida desgraçada!” 

De posse do bilhete de volta, deu um estirão na perna, fechou os olhos e viajou.

O CONSENTIMENTO

O Tarcísio cismou que tinha que casar. Era uma tradição na sua família os homens casarem cedo. Com vinte e oito anos se achava um solitário. Um sofredor. Comparecia nas festas e não aproveitava, não se divertia, não dançava, não sorria. Só bebia. Até cair. Só havia uma solução: casar.

Um dia perguntou para a Núbia, sua antiga colega de escola se ela queria casar com ele. Ela, primeiro levou um susto, depois ficou pensativa. E nesse emaranhado de pensamentos enxergou uma vida melhor, afinal os negócios do Tarcísio andavam de vento em popa. Então, devolveu o copo de guaraná sobre a mesa da lanchonete, olhou firme os olhos do Tarcísio, deu um beijo no seu rosto suado e disse: “ - quando?”

Dois meses depois estavam casados. Aparentemente felizes. Passeavam, se divertiam, dançavam, enfim, andavam sempre juntos, para cima e para baixo. A felicidade que havia escapado feito um pássaro arisco que que havia voado pra longe, voltou para o Tarcísio. A sua vida agora era só alegria. Os amigos até estranharam que por dentro daquele sujeito invocado, casmurro, houvesse, escondido, uma alma tão expansiva, doce e festiva.

A Núbia continuou do mesmo jeito: quieta, com um ar de mistério. Parecia estar sempre atirando, para quem a olhasse, uma espécie de indecifráveis mensagens. Mas isso ninguém estranhava, afinal, desde de pequena ela foi assim; econômica nos gestos, comedida nos sorrisos, discreta nas atitudes, parcimoniosa nos gastos, contida no vestuário e moderada com as palavras. Se tornara aos olhos de todos um exemplo de mulher, de esposa e de dona de casa. E por ser de pouca conversa ninguém sabia nada a respeito dos seus pensamentos. Nada, nada. Era um túmulo hermeticamente lacrado, a Núbia.

Antes de casarem, ela estava fazendo uma segunda faculdade: psicologia. E todas as noites o Tarcísio a levava até o portão da universidade, para depois, no final do turno ir buscá-la. 

Assim iam levando a vida. O Tarcísio durante o dia na sua loja de autopeças, a Núbia cuidando da casa, dormindo as manhãs inteiras e assistindo na tv, toda a programação da tarde. De noite a faculdade, e passeios no fim de semana nos parques da cidade e jantando fora, no mesmo restaurante, aos sábados a noite. Sempre.

O Valdo que era amigo do peito, de toda a vida chegou para o Tarcísio e disse, direto, seco: “ - A Núbia está te traindo:”

“ - Tá louco, amigo! Que bobagem é essa?”

“ - Está sim. Eu estudo na mesma universidade que ela, e três vezes por semana, nas segundas, quartas e quintas, assim que tu vais embora, após deixá-la no portão, ela anda um pouco pátio adentro, dá meia-volta e entra num carrão preto e só retorna meia hora antes de encerrar o turno. Entra novamente para o pátio, e quando chega a hora, ela sai, casta e pura, para ir embora contigo. Antes de te falar, observei por longo tempo essa rotina. Podes averiguar. Concluiu o Valdo.

Na outra noite, após a Núbia descer do carro e entrar no Campus, o Tarcísio estacionou o carro mais adiante, desceu, atravessou a rua e ficou observando.

Não deu outra. Aconteceu exatamente como o Valdo lhe contara. Esperou outro longo tempo, até que meia hora antes do término das aulas ela desembarcou do carrão preto.

E para ter bastante certeza, o Tarcísio repetiu a rotina de observação dos passos da Núbia naquelas noites marcadas, sem nunca lhe falar nada, sobre as suas repetidas e rotineiras traições. Continuava o mesmo, como se nada soubesse, até que um dia desistiu daquela dedicada, cansativa e já neurótica vigília.

Uma noite de sábado, final de semestre, após o jantar no restaurante de sempre, o Tarcísio diz:

“ - Como é o nome dele?” 

“ - Fábio.”

“ - Posso conhecer, o Fábio?” Perguntou o Tarcísio.

“ - Não. Vai perder a graça!” Respondeu a Núbia.

O Tarcísio chamou o garçom e pediu duas taças de ambrosia.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O PACTO

Era uma mulher formosa a Alberta. Farta de corpo, com um traseiro generoso, seios graúdos e uma boca apetitosa, úmida, sugerindo secretas tentações. Pele morena, corpo esguio e um par de coxas que eram um convite ao pecado. E os pés com tornozelos afinados e os dedinhos que pareciam frutinhas retiradas de um desconhecido pomar. Quando passava, deixava solto no ar o rastro de um perfume, que outra coisa não era, senão o cheiro de um cio acumulado; detalhe soberbo que a fez colecionar paixões devastadoras dos incontáveis e desesperados pretendentes, alguns capazes de abandonarem as suas ilibadas reputações, para terem o indizível prazer de poderem desfrutar, uma só vez que fosse, das carnes de tão exuberante mulher.

Lá pelos quarenta anos, com um passado desregrado e com um filha com quinze anos, conheceu o Jorge, e viu ali a escapatória de uma vida de dificuldade.

Casou com o Dr. Jorge, médico de bom nome, zeloso do seu ofício; cuidava com abnegação, quase como um sacerdócio, das doenças do corpo e da mente da sua imensa clientela. Era um homem bondoso, sossegado, caridoso; um bom coração. Atendia a todos a qualquer hora, independente das posses que seus pacientes eram donos. Nada mais justo que fizesse fortuna, com tão extremada dedicação aos males do ser humano.

O Dr. Jorge há pouco havia rompido a barreira dos cinquenta e sentia, quando a noite chegava, uma solidão desgraçada, e enxergou na Alberta a companhia certa para aquecer aquele solitário coração.

Trocaram, com essa união, os interesses. Cada um dava para o outro, aquilo que o outro tanto necessitava. Ela lhe forneceria companhia, ele, em troca, daria a estabilidade. Fizeram, o que acontece a rodo, quando a base dos relacionamentos funciona como uma espécie de comércio. Uma loja em que as transações nada mais são do que uma busca de vantagem pessoal, onde, inevitavelmente uma das partes deve entrar com uma boa quantia em dinheiro. Afinal, tudo tem o seu preço, principalmente quando o amor também está a venda.

Negócio fechado, agora havia um problema. Aliás, um problemão. Por ser portador de uma devastadora diabetes, o Dr. era proprietário de irreversível impotência sexual.

Quando ele confessou o seu drama para a Alberta, esta sentiu-se aliviada, e aproveitou a oportunidade para atirar as suas fichas na mesa e jogar. Disse para o Jorge que há anos tinha um namorado, o Pedro Galo, que a partir de agora – do casamento – seria o seu amante.

O Dr. sentiu o golpe, mas em instantes se recuperou. Entretanto, nada falou. A falta de voz é a emoção ou a dor do consentir, diz o antigo adágio. O silêncio do Dr. Jorge, deixou escrito nas entrelinhas, que assim poderia ser; doravante. Ali, naquele instante, ficara rigorosamente firmada uma aliança, que através daquele indelével acordo tácito, cada um cuidaria da sua parte, zelando os devidos acordos, para que o negócio se tornasse mais próspero a cada dia.

Só impôs uma condição, o Dr. Jorge: que tudo fosse feito discretamente. O seu prestígio não poderia, de modo algum ser abalado naquela triangulação. Acordo fechado, sorriam os dois de alegria.

O Pedro Galo, um rapaz bem traquejado, da noite, dado a festas, mulheres da vida e afeiçoado as cartas do baralho, também melhorou de vida, com o apoio financeiro, que agora a Alberta lhe concedia. Adquiriu roupas novas, comprou um carrinho usado, e bem exibido, andava com os bolsos extremamente bem capitalizados.

O Dr. Jorge caiu do céu, como um diamante sem jaça, enviado sabe-se lá por que espécie de divindade, para a Alberta, para a filha e para o safado do Pedro Galo.

Depois de uma certo tempo, os quatro passeavam juntos. Viajavam até a praia mais próxima, onde almoçavam, passeavam e faziam compras. Quatro não. Cinco. Por que a filha já havia arrumado um namorado. No carrão, o Dr. na direção, a Alberta ao seu lado. No banco de trás, a filha, o Pedro Galo e o namorado sentado entre os dois. Que alegria eram aqueles momentos. Todos sorriam, cantavam, e deixavam combinado onde iriam no próximo domingo. Olhavam para o amanhã e só viam contentamento.

Uma noite em famoso restaurante, após o jantar a Alberta comunicou ao Dr. que estava grávida. A filha baixou a cabeça e ficou brincando com os anéis, o namorado olhou para o teto e começou a contar as lâmpadas, o Pedro tirou a tampa do paliteiro e ficou dissimulando também, quebrando em pequenos pedacinhos todos os palitos que tinha na sua frente. O Dr., primeiro engoliu em seco umas bolas que trancaram na sua garganta, tomou um gole d'água, levantou a cabeça, sorriu o único sorriso que encontrou para sorrir e disse: “ - Que bom, Alberta. Que notícia maravilhosa. Estamos todos de parabéns. Vamos comemorar.” Chamou o garçom e pediu duas garrafas de espumante, esquecendo da diabete.

Brindaram, apertaram as mãos, se abraçaram. O Dr. beijou a Alberta, a filha e o namorado beijaram a Alberta e o Pedro Galo também beijou a Alberta.

“ - Se for guri vai se chamar Jorge Pedro”, exigiu a Alberta.

“ - E no dia do nascimento vamos fazer uma festa. E você, Pedro Galo, desde hoje já fica convidado para padrinho”, disse feliz da vida o Dr. Jorge.

O Pedro Galo topou na hora, dando uma piscadinha de olho maliciosa para a Alberta que devolveu a mensagem, com um leve sorriso, que mal mexeu com o canto direito da boca, com a cumplicidade de quem, separado dos outros, selavam dentro do ajuste atual, um outro pacto para o futuro.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O MARIDO DOMESTICADO

Assim que voltou da farmácia onde fora comprar absorvente íntimo para a Dinorá, o Elpídio sentou no sofá, colocou o gato felpudo no colo e disse baixinho para o animal: - que saudade do meu tempo de solteiro, quando eu era livre, meu amigo. Quando eu não tinha ninguém para obedecer. Da época que eu era um aprendiz de predador, vivendo em estado selvagem. Depois de casado o homem se torna um animal doméstico, cativo da sua dona. As esposas sabem domar um homem. É um ensinamento secreto que a mãe transmite para a filha junto com o leito materno.

Primeiro, a gente é criança e vive sendo mandado pelos pais. Depois fica adulto, casa e continua acatando ordens. Só troca a chefia. Agora que me aposentei, foi então que a coisa piorou. Me transformei em secretário da Dinorá: é um tal de Elpídio sair para comprar pão, leite e margarina, levar roupa na costureira, comprar esmalte e lixa de unha e tintura de cabelo, e pintar os seus cabelos. Sim, porque sou eu quem trata as cutículas, as unhas e os cabelos da Dinorá.

Parece que ela tem prazer em mandar em mim. Não pode me ver quieto que inventa alguma coisa para eu fazer. Ultimamente, são também, tarefas exclusivamente minhas, lavar a louça, cozinhar, tirar o pó dos móveis, arrumar a cama, limpar as vidraças e varrer a casa. E a madame, lá deitada assistindo televisão, ficando mais gorda a cada dia que passa.

Isso deve ser coisa do perfil de personalidade: homens calmos e fracos são atraídos por mulheres mandonas. Se eu fosse um homem durão, nem teria conhecido a Dinorá, porque homens fortes atraem mulheres sensíveis e mulheres autoritárias atraem homens frágeis. Os casais se formam baseados na ancestral lei da atração entre os opostos, feita por dominador e dominada ou dominado e dominadora. É a influência do império da lei da selva: o mais forte sempre subjugando o mais fraco.

Agora é tarde para mudanças. Até porque já estou acostumado com essa desmoralização. No fundo aprendi a gostar de ser mandado. Aliás, nasci para receber ordens. Não possuo espírito de liderança. Nunca fui promovido na repartição, justamente por ser alguém sem iniciativa, acomodado. Se não receber ordens, fico perdido, sem saber o que fazer. Acho que fui escravo numa encarnação passada.

Nisso a Dinorá gritou lá do quarto: “ - Elpídio, me faz um chá de boldo bem forte. Ah, e cuida para não ferver a água. Ah, e serve naquela xícara que tem um galo estampado. Ah, não esquece de conferir se desligou bem o fogão. Ah, e com duas gotas de adoçante. Ah, e não esquece do pires. E ligeiro Elpídio, que estou com o estômago todo embrulhado. Aquela tua maldita macarronada está viva, corcoveando dentro da minha barriga.”

O Elpídio olhou nos olhos do gato felpudo e falou para o bichano: “ - que porcaria de vida! É nessas horas que eu tenho vergonha de ter nascido homem!”

Recolheu com a ponta da língua uma lágrima quente que caiu sobre o canto da boca, e respondeu com a voz macia dos vassalos: “ - já estou indo querida!”

E o gato felpudo miou forte, exigindo leite morno no pratinho.

O CASALZINHO

Aquela não fora a primeira vez que a Maria Celeste flagrou o Fabinho experimentando os seus vestidos. Só que desta vez a coisa piorou mesmo, atingindo níveis preocupantes.

Pois chegou em casa, a Maria Celeste, antes do horário de sempre e viu com os olhos arregalados o Fabinho todo vestido de mulher, com um pretinho básico justíssimo, maquiado, unhas vermelhas, sobrancelhas aparadas, batom e cílios postiços e brincos com pingentes de ametista, colares e pulseiras, sandálias de saltinho e sutiã meia-taça com enchimento, e todo depilado fazendo boquinha e poses femininas na frente do espelho, embaixo de uma cintilante peruca loira.

– Fabinho! O que é isso, meu filho. O que tu estás fazendo desse jeito?

– Não é nada mãe. É só uma fantasia para uma festa temática.

– Festa temática? E por que não te vestes de Zorro, Super-homem, Batman, Homem-aranha, Chaves, então? – Tem que ser de mulher? Uma perua ainda por cima! E esse jeitinho todo afrescalhado, hein, seu Fabinho?

– Que nada mãe! É legal! É diferente!

– Se o teu pai te vê assim vai te matar! Aliás, vou ter uma conversa com o Haroldo, a teu respeito.

E se foi o Fabinho noite afora, quando um carro com um rapaz buzinou na frente da casa.

– Haroldo, é o seguinte: nunca te falei, mas a situação não é mais uma brincadeira. O Fabinho se veste de mulher, se pinta, se maquia, se depila. Acho que o nosso filho é gay. Acho não, tenho certeza!

– Nem diz uma coisa dessas Celeste. Não criei um filho pra ser veado. Não, não e não! Tu estás maluca, mulher. Me nego a aceitar isso como verdade.

– Mas é a pura realidade, Haroldo! – E mostrou umas fotos tiradas com o celular quando o Fabinho estava distraído.

O Haroldo caiu enfraquecido, branco como a neve por cima do sofá: – não acredito meu Deus. Vou dar uma surra no Fabinho. Vou mandar esse piá de bosta para os confins da Amazônia. Vou mandar ele para o Alasca. Melhor, vou matar esse descarado. Canalha. Onde já se viu, sair do meu sangue uma bichona. Isso é ridículo.

– Não é o fim do mundo, homem! Pensando bem, é melhor que ele seja gay do que ladrão!

– Não, mulher! Prefiro ele ladrão, assaltante de banco, batedor de carteira, do que veado. O que os meus amigos vão dizer? Vou virar motivo de gozação no escritório, no bairro, na cidade, no país, no mundo!

– Haroldo! Menos Haroldo. Tu estás assim pelo choque inicial. Logo tu te acostumas com a idéia.

– Nem pensar – disse o Haroldão já retirando o 38 do roupeiro. – O que foi que eu fiz, meu Deus? Meu único filho, um veado. Não! Não e não! Não aceito hoje e nunca essa idéia, acho que vou me matar de tanta vergonha. – E nossa família, Celeste? Já pensou, Celeste? Vai manchar a honra do nosso nome essa bicha enlouquecida.

Já madrugada, o Haroldo sem dormir, ouviu o barulho da porta se abrindo, e de cima das escadas viu o Fabinho todo vestido de mulher, bem fêmea, abraçado com um sujeito fortão, sarado de academia, todo tatuado.

– Pai! Este aqui é o Pedrão, o meu marido!

O Haroldo rolou degraus abaixo e caiu sem vida sobre o tapete da sala. Nem a respiração boca a boca que o Pedrão fez, resolveu.

Desceu a Maria Celeste, fez um chá de camomila. Tomaram os três na mesa da cozinha, e ela disse, olhando com ternura para o Fabinho: que belo casalzinho vocês fazem, meu filho!

E ela decidiu que iria para o quarto de hóspedes, e que após o enterro, o Fabinho e o seu marido Pedrão dormiriam no quarto dela, afinal, quem está casado precisa de uma cama de casal

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A BELEZA INTERIOR

Sim, eu sei. Eu sei! As feias e os feios dizem que o que conta é a beleza interior. Que a beleza física se perde com o tempo. E o que fica de marcante, aquilo que realmente interessa, é a luz que vem de dentro da pessoa. No entanto, sabemos que esse antigo e controverso discurso até hoje não foi plenamente comprovado. Não é matéria pacífica. Basta ver a imensa procura por cirurgias plásticas, rejuvenescimentos faciais e a enorme demanda por cosméticos, pomadas, cremes e loções, com o aflito propósito por melhoria da aparência. 

A Ondina foi ficando solteirona. O tempo foi passando, passando, e ela encalhada, agora com cinquenta e cinco anos, sem jamais ter conseguido um pretendente. Também pudera, era feiíssima, a coitada. 

Abandonou a interesseira ideia da beleza interior, foi até uma clínica de cirurgia plástica, avaliou os pontos que necessitavam de correções e fez uma espécie de consórcio, ou crediário em 24 parcelas, em busca da remodelação total da sua tão prejudicada fisionomia. 

Tirou uma licença-prêmio de seis meses que estava em atraso e despediu-se do pessoal da repartição; deu um abraço especial no Louzada, prometendo para quando retornasse, uma nova Ondina. Ninguém entendeu a promessa, e continuaram a não fazer nada, que é o que sempre faziam naquele órgão público. Fingiam que trabalhavam aquelas quinze pessoas, onde duas bastavam para a realização do pouco serviço que ali havia. Cabide de emprego: sabem? Todos sabemos! Mas isso é outro assunto. Voltemos para a Ondina. 

No hospital, na véspera da cirurgia veio o cirurgião para uma avaliação final, com uma planilha e um papel com uma silhueta humana, onde, com uma caneta vermelha estavam marcados os pontos a serem corrigidos. 

Ali, junto com a Ondina, o médico repassou os procedimentos: retirar as bolsas escuras debaixo dos olhos e os pés de galinha; encurtar o nariz adunco e deixá-lo levemente arrebitado; preencher com gordura os lábios caídos e murchos; diminuir os lóbulos das orelhas que haviam despencado; dar um acabamento no queixo que parecia uma bola vermelha; retirar a papada, que de tão crescida formou um segundo queixo; esticar a pele do rosto que havia desmoronado e retirar o excesso de pele do pescoço enrugado. Ah, a testa: fazer desaparecer aquelas rugas de expressão que lhe davam um ar pesado, sisudo. 

Do pescoço para baixo, ou seja, a diminuição dos seios imensos; a lipoaspiração na barriga, nos pneus, nas costas e quadris, bem como nos culotes, panturrilhas e gorduras nos braços, ficariam para a etapa seguinte, logo após a sua recuperação da primeira intervenção. 

Não teve sorte, a Ondina. O destino não lhe deu a chance de realizar a segunda fase da cirurgia, aliás, nem a primeira. Alguma coisa complicou com a anestesia e a mulher morreu na mesa de operação, antes que a magia do bisturi entrasse em ação. Além de morrer feia, morreu virgem, a Ondina. 

No enterro, os colegas da repartição comentavam que a culpa era do Louzada. Ela que era apaixonada por ele, e precisava conquistá-lo. Pensava que com o corpo remodelado, teria alguma possibilidade. Só a beleza interior não estava sendo suficiente para realizar aquela conquista. 

Sumiu a Ondina de cima deste mundo, da cadeira onde sentava e da mesa da repartição pública. E desapareceram os olhos, que enamorados, perseguiam o Louzada durante o expediente. Ele, que também não havia sido favorecido pela natureza com beleza alguma, viúvo, sessentão, na forma de desabafo, disse para os colegas na hora do cafezinho: “ - eu já nem olhava mais para o corpo e o rosto da Ondina. Já estava encantado com a sua alma cintilante, com o brilho do seu espírito, com a força da sua aura. Agora é tarde. Eu já andava ensaiando um convite para a gente sair para jantar, quando pretendia pedi-la em casamento. Agora é tarde. Muito tarde.” 

E saudoso, suspirando fundo, o Louzada completou: “ - Que beleza interior tinha a Ondina! Que beleza! Nunca vi mulher mais linda do que ela. Uma rainha! Uma rainha!”

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

ESTA GENTE MENTIROSA

Sem vocação para ser astronauta, costureiro, vidente ou feiticeiro, gerente de banco, dono de igreja, agiota ou vereador, bem como sem nenhum pendor pelas demais profissões de relevância, me restou ser garimpeiro de palavras. Me envolvo em juntá-las com a intenção de construir frases que mereçam ser escritas. É com elas que luto, atravessando longas e indormidas madrugadas. Tornar-me escriba foi a parte que me tocou, ao invés de me esforçar em outros mais estáveis, renomados e rendosos afazeres.

Assim, desprovido de talentos, desde que sei de mim vejo-me solitário, debruçado sobre uma mesa diante de uma folha de papel em branco, com uma caneta bic entre os dedos, espremendo a cabeça no afã de escrever histórias que o leitor não abandone antes do final. Dar vida aos personagens que me imploram para nascer, e desta forma, vivos, terem a única oportunidade de falarem sobre suas existências, tornou-se uma imposição, ao contrário de um mero ofício, ou ainda, muito além de um simples convite da alma para o diletante exercício de uma atividade eventual.

Incontáveis vezes ao longo da vida pensei em abandonar esta obrigação de ter que escrever. Prometi mil vezes e não cumpri. Sempre voltei à senzala tal um arrependido escravo fugitivo.

Mais tarde percebi que aquilo que eu pretendia renunciar, seria a minha salvação. Estou salvo, pelo menos até hoje, graças à imaginação, ao sonho; essa loucura de ter que deixar no papel os casos que preciso contar. Foi a ficção, a invenção, mais a realidade que vi, que vivi e que registrei, enfim, a literatura, que deram sentido à minha vida. Tanto o que li quanto o que escrevi, trouxeram um milagre à minha existência. Se não fosse por esses meios, já teria sucumbido. É apenas escrevendo que me sinto livre, independente, com autoridade plena para dizer tudo que digo. Quando escrevo sinto as minhas asas se abrirem para o infinito em tão indispensável voo. É quando consigo ser dono absoluto de mim. Não preciso de ninguém. Sou proprietário dos pequenos mundos que construo. Coloco, quando necessário, na boca dos personagens, as falas que não diria se usasse a primeira pessoa, e que de outra maneira jamais seriam ditas.

Nos momentos que estou envolvido com uma história, quando entro no universo da fantasia, exijo de mim, inventar, usando pincéis que mergulhem suas pontas nas tintas retiradas dos dramas que vivemos. Quando falo de fatos e pessoas reais, não permito que exista um distanciamento de suas vidas; tenho que ser verdadeiro. E nas vezes que digo de mim, não tenho receio em contar das minhas fraquezas e derrotas; abro o peito, mostro o coração. Deixo que me conheçam.

Mas aqui vai uma aparente contradição: sempre que pretendo refazer a vida, recrio-a a meu modo, da maneira que eu desejo que os meus personagens vivam; do jeito que eu queria que a vida fosse. Afinal, são os personagens, tão somente criaturas, mas que até poderão, que ironia, viverem mais tempo e serem melhores e terem mais importância, consistência e renome que o seu criador. É o grito do homem ecoando além da sepultura, quando as criações se tornam mais dignas e longevas que seus criadores.

Recebo notícias que meus dizeres levam distração, inquietação, e às vezes reflexão aos estimados leitores, que me honram por demais com suas preciosas atenções. Me realizo quando o barro que sovei foi bem aceito; que não entreguei um tijolo inútil. No entanto, não escrevo especificamente para alguém. Escrevo porque escrevendo me sinto vivo. Escrevo diariamente, porque todos os dias tenho que me livrar da morte; do vazio, do tédio, da inutilidade. Preciso me salvar a cada dia que nasce, assim como um corpo enfermo que necessita da salvadora dose de sua medicação de uso continuado. Somos, eu e o doente, e perdão aos que me leem, mas todos nós, as mesmas figuras humanas: tão frágeis, tão breves, tão aflitas, tão miseráveis buscando desesperadamente uma saída para as nossas dores e angústias. 

Finalmente terminei o texto acima. Disse algumas verdades minhas do ato de escrever. Porém me restou uma sensação estranha, melhor, uma evidente certeza, de que fui mentiroso quando pretendi ser sincero. Porque como bem disse Fernando Pessoa, que “o poeta é um fingidor...”, uma vez que é através da criatividade e da imaginação que ele se escapa; que sobrevive. E como é notório, que a literatura é o exercício da mentira, porque são os escritores, mentirosos profissionais; comigo é que não haveria de acontecer diferente.

Então, todo cuidado é pouco. Melhor não acreditar nos contadores de histórias, essas pessoas sem vocação para nada, que se utilizam da invencionice para tentarem ser alguém, enganando a pureza das boas almas dos leitores.



Para se salvarem, os escritores, nos seus romances, novelas, poesias e contos, são capazes de tudo, inclusive de inventarem as maiores mentiras já ditas sobre a terra. Gente muito falsa, os seres desta espécie. Por essas e por outras, é até aconselhável, ninguém conhecer pessoalmente os seus autores prediletos. Do contrário, vai haver decepção.

sábado, 30 de novembro de 2013

VIVER, DEPOIS ESCREVER

O apartamento estava uma bagunça. Cinzeiros transbordando, a cama de casal desarrumada. Diante da janela, na escrivaninha, rascunhos, folhas amassadas e outras em branco e as contas de luz, aluguel e condomínio vencidas. Sobre o sofá uma mala vermelha estufada com sandálias, tênis, vestidos, blusas, saias, camisetas, sutiãs, perfumes e um casaco estampado e uma revista de moda.

Ouve-se um barulho na porta e após insistentes batidas, João Francisco, meio depressivo, sonolento, tentando curar a quinta ressaca consecutiva, vê pelo olho mágico a imagem da sua Antônia.

– Vim buscar as minhas coisas, Francisco!

– Não faça isso querida. Vamos tentar mais uma vez!

– Nada de tentar outra vez! Não aguento mais essa tua vida. Olha só a sujeira deste apartamento. Depois que resolveste ser escritor, só te preocupas com isso, Francisco! As demais atividades importantes, e eu principalmente, fomos deixadas de lado. Chega! Não quero saber de ti e desses teus escritos malditos.

– Antônia, eu te prometo, eu juro por tudo que é mais sagrado que vou mudar. Vou arrumar um trabalho fixo, vou te levar ao cinema, ao teatro. Vamos passear novamente de mãos dadas pelos parques da cidade como dois apaixonados namorados. E só vou escrever, de hoje até o dia da minha morte, não mais do que quinze minutos por dia. Podes acreditar Antônia, vou disciplinar a minha vida. Vou ser outro homem!

– Quantas vezes já me prometeste essas mudanças, João Francisco? Quantas? Dez, cem, milhares de vezes, e continuas o mesmo egoísta, relaxado e desatencioso de sempre. Tu só amas a literatura e essas ideias malucas que a toda hora, incessantes tal um olho d'água brotam desta tua cabeça irresponsável. Cabeçudo! Cabeçudo! Tchau, tchau e tchau. Tchau pra sempre, cabeçudão. Devoraste a minha juventude, seu canalha! Todas as minhas carnes se consumiram nas tuas mãos, desgraçado!

Foi até o sofá, decidida e braba como nunca, pegou a mala vermelha, o casaco estampado, a revista de moda e sem olhar para trás bateu a porta nas fuças do Francisco.

Ele foi até escrivaninha, sentou-se, apoiou o queixo dentro da concha da mão esquerda e pensou: “Tá bem! Ela se foi, mas me deixou um bom enleio cheio de altos e baixos; encontros bonitos, brigas e reconciliações. Separações e reencontros. Foi muito instável esse relacionamento! Mas, quem sabe, esta não seja a história que eu sempre procurei? Afinal, só o que dá errado pode render uma boa trama!”

Olhou pela janela e viu a praça com os ipês e os jacarandás floridos, e os sabiás trinando suas canções de acasalamento e sentiu o ar gostoso da primavera bater suave no rosto e invadir a sua alma.

Com um renovado vigor, abriu um cabernet antigo, pegou a caneta e foi tentar escrever o livro da sua vida.

Então fez vibrar a ponta da pena que lascou quente no papel, o título: “primeiro viver, para depois escrever.”

A PERUCA

Patrícia, moça tímida, universitária, filha de uma conhecida família do interior que por não gostar dos seus cabelos, do seu rosto, nem do seu corpo, nem da sua alma, nem das suas mãos, comprou uma peruca feita de cabelos humanos, de um loiro legítimo, bem tratado. Pensou que esse adereço lhe daria aquele encanto, uma simpatia que naturalmente não possuía. 

Acordava cedo, tomava um banho, passava um gel pra baixar os cabelos enfiava a peruca loira. Pronto. Se achava outra mulher, com a longa e brilhosa cabeleira postiça. E colocava a cada dia no braço direito um dos relógios falsos, baratinhos, coloridos, combinado sempre com a cor das sandálias de borracha, também de pouco preço. Colecionar reloginhos era uma das manias que tinha. 

Uma semana após inaugurar a peruca começou a sentir uma espécie de náusea, um mal-estar seguido de uns pensamentos estranhos que traziam uma vontade compulsiva de transgressão. Uma força negativa tomava conta da sua alma, contaminada com ímpetos severos de ferir e até matar alguém. 

Entretanto, bastava chegar em casa, retirar a peruca para voltar a ser aquela pessoa de sempre: tímida, solitária, carente, colecionadora de manias. Depois do banho ligava para o Ronaldo Tavares, motorista de táxi, trinta e cinco anos mais velho que ela e dizia que o amava e que estava com saudades e que estava precisando do seu apoio emocional e ficava horas no telefone desabafando as suas instabilidades. 

Certa noite de céu sem lua, quando vai abrir a porta do prédio, por coincidência, o Ronaldo vem chagando para visitá-la. Elogia o seu novo visual, mas nota uma expressão diferente no rosto, no olhar, nas mãos da Patrícia. 

Sobem pelo elevador em silêncio até o décimo quinto andar. Que estranha está a Patrícia, hoje. Pensou o Ronaldo, sem ter coragem de romper aquela quietude. 

Senta no sofá, de novo elogia a Patrícia e não recebe resposta. Se distrai olhando uma caixa de sapatos cheia de relógios de plástico que estava sobre a mesinha de centro. 

A televisão e o aparelho de som estavam desligados, diferente das outras vezes, quando ela os mantinha em alto volume. Que coisa! Pensou o Ronaldo. 

Sem falar nada, a Patrícia vai até o quarto, abre a porta do ropeiro, retira lá do fundo, debaixo de uma acolchoado, uma adaga, herança do seu bisavô, das velhas revoluções, e vem macia, em silêncio, sem ruido, pelas costas do coitado do homem. 

Sente um forte arrepio que torna áspera toda a sua pele, e com a mão esquerda faz um gesto que pretende retirar a peruca. A mão para no meio do caminho. Uma força poderosa e incontrolável se apodera da outra mão. 

Ela dá três passos adiante em direção ao sofá, para e levanta a espada o máximo que pode, perpendicular ao seu corpo. Segura firme o cabo com a mão direita e a lâmina com a outra. Está possuída por gigantesca determinação maligna; precisa matar. 

Nesse exato momento, Ronaldo vira a cabeça para trás, e vê, estupefato, quando toda a lâmina afiada do ferro branco se enterra até o cabo, no peito da Patrícia. 

Quando levantou-se pra telefonar, com a moça agonizando, já com a metade daquele espírito no outro mundo, o Ronaldo sem entender o que havia acontecido, viu as mechas dos cabelos loiros da peruca se erguerem do tapete, vibrando, parecendo labaredas de fogo que dançavam dando risadas, fazendo uma festiva algazarra como se estivessem comemorando uma grande vitória. 

Lá fora, chovia forte na noite escura e todos os reloginhos de plástico pararam marcando o mesmo horário.

A JAPONA DO BRECHÓ

Tarde enferruscada de um inverno malvado, com pouco agasalho, Arcádio procurou um brechó, atrás de uma japona grossa, de lã pura, para espantar o frio. 

Encontrou uma, de cardadura natural, mesclada com filaças torcidas, tingidas de marrom, e outras brancas, da cor que brota do couro da ovelha; já meio surrada, um pouco grande; além do seu corpo. 

Mas com o escasso dinheiro que era dono, tinha que ser aquela, ou trincar os dentes por levar os relhaços do Minuano na cara. E foi dentro dela morar. 

Vestiu, e se foi rua afora. Ombros encolhidos, grudados no pescoço, gola levantada acima das orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos, como dois bichos enfurnados em suas tocas. 

E o vento zunindo, desgovernado, sem patrão. 

Sentiu-se gente de novo, metido dentro daquela moradia quentinha. Sorriu contente pelo aconchego da nova proteção. 

De tão feliz que estava caminhou tanto que esqueceu de parar. Só parou no banco da praça, com as barras do amanhecer anunciando que outro dia vinha chegando, novinho em folha. 

Deitou e dormiu, e no meio do sono sentiu uma sensação estranha; no corpo e na alma. 

No corpo, uns arrepios, de um arzinho assoprado, e na alma, uma outra coisa estranha se mexendo junto. Parecia que tinha outro por dentro. 

Sentou-se no banco de cimento, e soube, que quando se cobriu com a japona do brechó, vestiu junto os eflúvios, do outro, que antes ali vivia. Aquele, que com ela se vestia. 

Entendeu, que a japona estava forrada, não de tecido, mas da alma do antigo habitante. 

E se deu por conta, vestido com aquela roupa de segunda mão, que as vestes daqueles que morrem ficam impregnadas de suas almas. Compreendeu, que quando usamos a roupa de quem já morreu, vestimos também o seu fantasma; a parte do defunto que não morre nunca. Que ficamos com a alma do outro, misturada com a que já temos, feito um encosto a nos atarantar. Associa-se, se amalgamando em uma estranha liga, a energia que está entranhada nas costuras, nas pregas e fios das vestiduras do falecido, e vem se fundir com a outra energia que está aprisionada em nosso corpo. 

Derrepente, já final de tarde, deu por si, e morrediço estava a caminho de um cemitério, empurrado por um vento misterioso; um outro vento; levado sem saber por quem. 

Comprou da florista, a mando do inconsciente, um crisântemo amarelo, com a única moeda que sobrou, e viu-se diante de um túmulo bem acabado; onde pescou com os olhos, no retrato grudado no mármore, a figura de um velho sorridente, que parecia lhe cumprimentar. 

Deteve-se com atenção na fisionomia do morto, e observou surpreso, que o defunto estava usando a mesma jaqueta, recém adquirida. 

Foi quando estranhou uma batida forte no ombro. 

Tomado inesperadamente por um pavor que lhe paralizou os movimentos, arrepiando todos os pelos, endurecendo a face e trancando o maxilar; que apesar do frio cortante que atravessava os ossos, sentiu um suor amornado correr rosto abaixo. 

Entretanto, nada de sobrenatural, naquele entardecer de nuvens pretas arrodeando tontas pelo céu. Era apenas o porteiro avisando que estava na hora de fechar os portões do cemitério. 

Retirou a jaqueta do corpo, a atirou por cima da cruz da sepultura, devolvendo-a para o seu antigo dono, e saiu à rua, batendo queixo, de frio e medo, e cabisbaixo o Arcádio pensou: “- bem-feito. Quem foi que te mandou usar roupa de gente que já morreu!”

AMOR BANDIDO

Noite na praça, ajuntamento dos que perderam. Bêbados, mendigos, prostitutas velhas e velhos doentes, drogados de todas as idades se amontoam bebendo cachaça, tossindo deitados em tapetes de papelão. Aldeia dos derrotados. É a sociedade dos esquecidos, dos marginalizados, que corre ao lado desta outra que se tem por digna, feliz, higienizada e exemplar; bem arrumadinha. 

Um deles que faz papel de esposa, está enrolado num pedaço de pano lilás para servir de saia e outro retalho amarrado no peito querendo ser sutiã. Sandália velha de saltinho folgada no pé e os lábios lambuzados de batom encarnado. Unhas compridas imundas pintadas de vermelho. Brincos de argola, colares, pulseiras e anéis encontrados no lixo. Rude indumentária feminina revestindo corpo rijo de homem. Gestos e fome de fêmea dentro do corpo forte de macho. Físico de quem já trabalhou no pesado precisando renascer mulher. Dedos encardidos que seguram preciosa lata de alumínio, por onde fuma desesperado a pedra do alívio, da redenção, do esquecimento; do sonho, talvez. Ou da morte. 

De repente seu companheiro se aproxima com jeitão de bandido mandão, o baixinho, cheio de pose de valentão, com outra lata grudada nos beiços. Estufa o peito, arma o braço e lhe dá um soco na cara, mais outro no queixo, mais uma porrada no meio da boca seguido por um violento direto no nariz. O travesti cai gemendo. Recebe mais coices nas costelas, no peito, no pescoço. 

Rola no calçamento frio urrando de dor. Chora as lágrimas de quem apanha. De quem sempre foi surrado pela vida e que deu depois da paixão para apanhar de marido. Encolhe-se em posição fetal, soluça baixinho como se estivesse no colo da mãe que nunca teve, com os olhos atirados, quase santos para os pés do amante, que lhe dá, um, dois, três, quatro chutes na cabeça. 

Os habitantes da praça olham e não reagem, acostumados com brutalidade e selvageria. Desta vez não foi com um deles; que sorte! A regra na vida sempre mandou dizer, que não importa onde alguém esteja; seja no ápice, no meio, na base ou enterrado no barro podre do subsolo da pirâmide social, é lei, que em briga de casal ninguém deve se intrometer. Que resolvam por si as suas encrencas. 

O travesti levanta a cabeça do chão, busca os olhos do amante, diz que está com sede. Ele alcança meia garrafa de aguardente vagabunda que é sugada em goles que estouram na garganta. O homem senta ao lado do travesti e faz uma cara de felicidade. O travesti que atende por Flor sorri e se abraça no parceiro, que diz se chamar Rei, rei de Reimundo; é o que sempre explicou, desajeitado, sem ter bem certeza do que fala. 

Abraçados, corpos sujos, suados, fedorentos, deslizam colados um no outro degraus abaixo da escadaria e se beijam apaixonados no meio do jardim. Sem rancor, sem raiva, sem ressentimentos. Só paixão; tesão da pura. 

Os dois, protegidos pelas folhagens, com as bocas tingidas de sangue continuavam se beijando. Os braços se agitam nervosos, as mãos alisam pernas, peitos, e apertam demoradamente as partes um do outro, quando ele, a Flor, afasta o rosto e diz no ouvido do Reimundo: 

- Perdão Amor! 

- Que nada minha Flor. Esquece. Não aconteceu nada! 

Depois fizeram amor, ali embaixo das estrelas.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A CIGANA MENTIROSA

Andava numa secura de dar dó. O coração parecia um deserto sem fim. Nada de chegar um amor para me fazer sorrir. Com as mulheres, andava tudo dando errado. Que fase aquela! 

Decerto por me ver carente, uma cigana com jeito de sabichona me atacou na rua, me cobrou bem caro, leu a minha mão e me encheu de esperanças: “que no outro dia, entre o nascer do sol até a noite trocar de data, eu conheceria um novo amor. Uma moça linda se apaixonaria por mim; tipo amor a primeira vista.” 

Amanheceu o dia, tomei banho, fiz a barba no capricho, coloquei a melhor roupa, tirei um par de sapatos da caixa, botei um perfume bom, ajeitei um sorriso na cara, esperei a hora certa e fui para a rua, esperar e procurar o tal do prometido novo amor. 

Olhava as moças bonitas; quanta indiferença. Elas passavam reto por mim. Era como se eu não existisse. As de meia idade estavam já desiludidas, não queriam mais problemas. E as velhas, bem, estas, para o amor carnal há muito estavam aposentadas. 

Mas não desisti. No horário do almoço procurei um restaurante movimentado, próximo a um centro financeiro, onde as executivas de bancos, multinacionais e grandes empresas costumam almoçar. Quanta mulher bonita! Bem vestidas, elegantes. Parecia que estavam prontas para uma festa. Decepção total. Nenhuma me notou. 

Como sou persistente, insisti, afinal tinha ainda a tarde toda e um pedaço da noite pela frente. Fui até um grande shopping, pois é lá que elas sempre estão. Andei atento pelos corredores, desci e subi infinitas escadas rolantes, tomei 18 cafezinhos, almocei outra vez, fui na fila dos cinemas, cansei de olhar vitrines e ninguém, nenhuma daquelas lindas mulheres se deu conta que eu existia. Cheguei a pensar que eu estava transparente. Que havia me transformado, numa espécie de fantasma. 

Já final de tarde, exausto de tanto andar tentando encontrar a minha amada, aquela que a cigana me prometera para aquele dia, fui até o banheiro me olhar no espelho. Me achei bem, e pensei que era uma injustiça aquilo que estava acontecendo comigo. Mas era preciso continuar insistindo. 

Saí do shopping e depois fui ao teatro. Outro lugar frequentado por mulheres interessantes. Me exibi, desfilei, fiz poses de galã, sorri bem simpático para todos mundo, puxei conversa; tudo em vão. Ali não se encontrava o meu amor. 

Terminou a peça teatral, as dez e pouco da noite. Então, fui para um boteco encher a cara, desiludido com o empenho que tive, com o sacrifício e o cansaço que arrumei; tudo inútil, sem conseguir o amor prometido. 

Bebi todas, todo metido a bonito naquela espelunca desgraçada. Quase meia-noite; hora de fechar, anunciou o bodegueiro. 

Paguei a conta, olhei para o relógio que marcava, que ainda faltavam cinco minutos para a profecia se concretizar. Como não sou de desistir fácil, fiquei ali até o último instante. Morro, mas morro em pé, lutando, nem que seja com um toco de espada na mão! 

Foi quando assim do nada, quase uma geração espontânea, apareceu bêbado na minha frente um travesti enorme. Parecia um operário da construção civil vestido de mulher. Me olhou nos olhos, sorriu feliz, me chamou de lindo e disse que queria casar comigo. Disse com uma voz melosa, que afinal encontrara o amor da sua vida. Abriu os braços para um abraço e ajeitou a boca para um beijo. Cruzes! Levantei e fui correndo para casa, sem o travecão, é claro. 

Safada! Ainda vou encontrar e matar aquela cigana mentirosa. No mínimo, pegar o meu dinheiro de volta. 

Quando a fase está ruim, meu velho, não existe santo que ajude. Muito menos promessa de cigana.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O JOGO DE CANASTRA

Nas noites de sexta e sábado, a Nanci e o Cléber, a Mirtes e o Pascoal se encontravam para jogar canastra. Um fim de semana no apartamento de um casal, o próximo, na casa do outro. Bebidas fortes e comidinhas, cerveja, aperitivos coloridos e salgadinhos, azeitonas sem caroço e martini com cereja espetada no palito; mesa com pano verde e baralho novo, apostas em dinheiro para dar graça ao jogo, falatório da vida alheia, fofoca sobre as últimas separações e velhas anedotas para descontrair. 

A mesa retangular na sala servia de palco para os encontros semanais. Os olhares de cumplicidade das duplas de marido e mulher, mais os sinais combinados de véspera, se manisfestavam discretamente, pedindo as cartas que precisavam. Era uma roubalheira deslavada. Mas assim matavam o tempo. Desmanchavam um pouco aquela rotina infame que se apossa desses casamentos antigos, que se afundam em crise precipício abaixo, agonizantes rumo à inevitável decadência. Flores murchas, não mais regadas pelo orvalho refrescante da novidade e da surpresa; que desanimados, sem reação, sem resistência, vão se enfraquecendo descontentes, dia-a-dia, por cima dos braços da indiferença, do desamor e da traição conjugal. Porque pensam que a felicidade, que o tão sonhado jardim está sempre no terreno alheio. Imaginam, que tolice, que é lá que encontrarão os seus tão almejados pedaços de paraíso. 

E o que acontecia sobre a mesa, os dois casais observavam atentos. No entanto, o que se passava por baixo do tampo revestido com a toalha verde, estampada em toda a sua extensão com os quatro naipes do baralho, era pura sacanagem. Invasão de território. O micróbio do proibido invadia solto, livre e despudorado, as intenções pecaminosas dos parceiros. 

O dedão do pé do Cléber roçava, deslizando dos joelhos até as virilhas da Mirtes, que sorria encantada, disfarçando que havia fechado uma trinca. O pé inteiro do Pascoal desfilava faceiro entre as coxas da Nanci, que sorria maravilhada, disfarçando que havia fechado uma sequência. Noite adentro aqueles pés adúlteros dançavam sob a mesa, cutucando, acariciando, desbravando, testando, conquistando pouco a pouco, pedacinho por pedacinho, tão desejada e perigosa propriedade. 

Certa noite, o Pascoal já meio bêbado errou as pernas da Nanci e acertou o joelho do Cléber, e alisou bem carinhoso. O Cléber gritou: “ - o que é isso meu amigo?” Mais adiante foi a vez do Cléber enfiar o dedão no meio das canelas do Pascoal, que deu um pulo da cadeira, e reclamou do engano: “ - que se passa, meu camarada?” E o jogo não parava. Dê-lhe canastra real. Dê-lhe canastra suja. Ganha uma dupla, logo a outra também. 

Já madrugada, os quatro jogadores já possuídos pelo efeito do álcool, quando os pés do Cléber e do Pascoal se encontraram no cruzamento por baixo da mesa. Colocaram as cartas sobre a mesa, se olharam firmes um nos olhos do outro e o Pascoal tomou a iniciativa: “ - vamos parar com esta enganação. Faz tempo, meses até, que eu acaricio as coxas da Nanci, por baixo da mesa, e você faz o mesmo nas pernas da Mirtes. Vamos acabar logo com essa encenação. A casa tem dois quartos; vamos decidir no par ou ímpar em qual deles fica cada dupla e realizar logo esta troca que tanto queremos.” As duas mulheres se olharam e sorridentes disseram que sim. 

Na próxima noite de sábado para domingo, já mais domingo do que sábado, estavam os quatro lutando com coringas, trincas e sequências, completamente sem roupa, nus, um na frente do outro, quando a Mirtes, a mais solta da turma, falou: “ - todo cuidado é pouco. O jogo que corre por baixo das mesas pode ser mais interessante do que um inocente carteado. Para os casais que estão com o casamento em crise, então, canastra é um perigo. Ou uma solução.” 

Agora, há mais de três anos que continuam se encontrando, todos os finais de semana. 

E a canastra? Ora, o jogo de canastra é só um pretexto. Mais importante que lidarem com sequência e trincas, para eles o bom mesmo é aquela gostosa troca de par.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

RATO SECO PASTEL PRENSADO

É recente. O fato aconteceu há poucos dias atrás. Estava passando por uma rua abandonada que também servia de moradia para mendigos, drogados e cachorros sem dono. As casas, poucas, muito simples, de madeira sem pintura, levantadas a grandes intervalos umas das outras. E muito lixo amontoado naquilo que era para ter o nome de calçada. Festa para os enxames de moscas, mosquitos e baratas. 

Olhando aquela paisagem decadente me distraio e quase piso em cima de um rato morto caído no meio dos vivos, que em bando, roliços de gordura, corriam por entre aqueles montes de sujeira. 

Pois tinha, esse rato que quase nele pisei, mais de um palmo de comprimento, coisa assim semelhante ao tamanho de um filhote de cachorro. 

Desviei do bicho esmagado, que estava ali, achatado no chão. Tinha as patas e o rabo estirados, bem abertos, feito um pequeno tapete estendido. As tripas e fezes enegrecidas, junto com o sangue coalhado, davam um aspecto asqueroso na pelagem marrom-escura da ratazana. Só a cabeça inteira, ilesa do ataque que resultou na sua morte. E as orelhas em pé, com a boca arreganhada mostrando os dentes no formato de agulhas afiadas; e os olhos pareciam que ainda enxergavam, saltados para fora da cabeça, como se olhassem, indefesos, para as moscas e formigas que nele se banqueteavam. 

Bem, daqui para a frente fica difícil eu prosseguir. Longe de mim ter a intenção de revirar o estômago de alguém; de querer provocar náusea e nojo em quem quer que seja. Registro o caso não para causar repulsa, mas tão somente, por ter sido o que vi, um ato desumano, cruel, indigno, inaceitável, uma agressão à dignidade humana. Aquilo não era outra coisa, senão a desumanização ali presente. 

Sei que com esta narrativa corro o risco do descrédito, já que o que segue beira a inverossimilhança, a estupidez, ao inacreditável. Daí que relutei em escrever este caso, por ele conter a matéria exata para ofender os mais sensíveis. No entanto, é minha obrigação registrá-lo, não para chocar, mas sim, movido por um sentimento de indignação, de protesto, de repúdio, de denúncia, até. Nesta história em particular, não posso inventar. Por tratar-se de um fato verídico, devo resistir à tentação e não utilizar as tintas coloridas da invencionice; a força da imaginação. 

Então, vi um homem subnutrido com jeito e cara de gente louca, pés descalços, longas barbas imundas e cabelos do mesmo feitio; vestido em andrajos, desmoralizado pelo álcool. Carregava no rosto, na boca e nos olhos saltados a mesma expressão do rato morto. Após, vi incrédulo, aquele homem dobrar os joelhos em pose de oração para apanhar o bicho pelo rabo. Nem se importou com a minha presença ali por perto. Com o rato pendurado numa das mãos saiu apressado em direção ao mato do terreno baldio ao lado. 

O que aconteceu a seguir eu não sei. Mas a julgar pela maneira que olhava faceiro para o rato seco, me deu a certeza que estava faminto. 

Está bem, confesso. Eu menti quando disse agora mesmo que não sabia o que depois havia acontecido. Foi uma negação inconsciente, uma resistência em precisar esquecer a cena que presenciei. Um ato falho criado pela minha mente, vindo de uma vontade oculta em querer pensar que aquilo jamais aconteceu. 

Em seguida, assim bem nítido, diante dos meus olhos, por entre as macegas e arbustos enxerguei o homem com as duas mãos na boca, fazendo força com os braços, pressionando-os tal uma fera, para estraçalhar aquela coisa com os dentes. 

Naquele momento senti um suor frio descendo testa abaixo, ao mesmo tempo que um caroço pegajoso me enchia a garganta, e com o corpo esvaziado da alma que eu tinha, perdi a fé em todas as divindades. E sem esperança também na humanidade saí ligeiro, com as pernas cambaleando, para bem longe, sem rumo; em direção, não pensei, mas acho que em direção ao inferno; que na verdade, era dele que eu fugia. 

O homem comeu o rato!

O FIAT 147

O detetive Jorge Augusto recém havia chegado em seu escritório. Nem tinha retirado do corpo a capa de gabardine preta e as galochas molhadas pela chuva, que caia rigorosa lá fora, quando entrou porta adentro, com as roupas escorrendo água, a Virgínia, chorando desesperada, e disse: – Jorge Augusto, roubaram o meu Fiat 147.

– Calma Virgínia. Era só um carrinho velho.

– Era de estimação. Eu amava o meu 147.

– Te dou outro, e para de chorar, Virgínia.

– Não é a mesma coisa, Jorge Augusto. Aquele, tu me deu de presente de casamento. Agora não tem graça nenhuma. Estamos separados há dez anos. Esqueceu, Jorge Augusto.

– É mesmo. Tinha até esquecido.

O Jorge Augusto e a Virgínia estavam separados, mas continuavam sempre, um perto do outro. Eram como uma espécie de almas gêmeas geradas em placentas diferentes. Os corpos estavam separados mas os espíritos continuavam unidos. Na época, separaram-se por incompatibilidade de gênios, por causa das rusgas intermináveis. Brigas por ciúme bobo. Falta de maturidade. Entretanto, permaneciam com a mesma conta conjunta, dividiam as despesas das duas casas; quando um adoecia, lá estava o outro, solidário, prestando amparo. Só sexo, não mais faziam juntos.

Então, ela se aproximou do Jorge e ele a abraçou bem forte, e assim ficaram até acalmar os soluços da Virgínia, que batiam forte, feito pequenos murros, no seu peito.

– Vou me matar, se não encontrar o meu Fiatizinho.

– Bobagem. Vão os anéis, ficam os dedos.

– Tu não compreende mesmo, Jorge Augusto. Aquele carrinho possuía alma. Eu falava como ele, e ele até entendia. Quando eu ficava triste, louca de saudade de ti, era com o meu carrinho que eu desabafava. Sentava, me debruçava na direção e contava tudo pra ele. Entendeu agora, Jorge Augusto?

– Entendo. Eu também desabafava a saudade que sentia de ti. Só que não era com o meu carro. Era no bar, enchendo a cara.

– Viu, Jorge Augusto. Cada um desabafa do seu jeito, não é mesmo? Quero o meu amiguinho de volta. Investiga, procura, faz um B.O., reage, vai atrás, faz alguma coisa pelo amor de Deus, Jorge Augusto!

– Tá bem Virgínia.

Investigou, procurou, fez um B.O., reagiu, foi atrás, fez o possível e o impossível, durante um mês, e nada de encontrar o Fiat 147 de Virgínia.

Um dia, telefonou para a Virgínia a marcou um jantar no restaurante que sempre frequentaram. Aliás, ali, noivaram, comemoraram o casamento, e depois, festejaram todos os seus momentos felizes.

No horário combinado apanhou a Virgínia em sua casa e rumaram para o restaurante. Ela com o rosto inchado, marcado por mais de trinta dias de choradeiras compridas, intermináveis, cumprindo um longo e doloroso luto.

Após o jantar, ele convidou a Virgínia para irem até a rua , e lá mostrou pra ela um Fiat 147 estacionado. Do mesmo ano e da mesma cor. Igualzinho ao desaparecido.

Ela, surpresa, disse: – É o meu 147?

– Não. É outro.

– Mas, é pra mim, de presente? Vai; diz que sim!! Diz que sim Jorge, querido!!!

– Só se tu casares comigo novamente.

Ela acariciou emocionada a lataria do carrinho, e dava pulos e gritinhos de felicidade. Depois se abraçou no Jorge Augusto, e após um grande beijo, com cara de apaixonada, disse:

– Onde vamos morar. Na tua casa ou na minha?

– Nas duas!

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A PRAÇA DOS AMORES COMPRADOS

Enquanto ele passava, uma velha gorda lhe disse: “ - vamos amor, minha experiência vai te custar muito pouco.” Mais adiante uma mulata com cara de sono, falou: “ - Só pela passagem do ônibus.” Outras com as pernas varizentas, propuseram: “ - nós duas, por um dinheiro qualquer.” Alguém que devia ser um travesti se ofereceu em troca de uma miséria para comprar droga. Uma loira de cabelo amassado falou alto: “ - vamos meu bem, por um prato de comida sou toda tua.” Outra que estava grávida, desdentada, implorou: “ - serviço completo, por uns trocados. Preciso levar pão para os três filhos pequenos. 

Ele sem responder as ofertas, meio desiludido, já havia quase atravessado a praça, quando uma delas, que não conhecia, com não mais que 17 anos, sorriu e lhe pediu um cigarro, com um sotaque do interior. Tinha os cabelos dourados, todos os dentes, unhas no capricho e um sorriso fácil que lhe vinha. Aparência de folhagem criada na estufa. 

Contou que estava perdida na cidade. Que não tinha onde dormir, nem outra roupa para vestir e nada para comer. 

Olhou para aquela moça que podia ser sua filha, falou qualquer coisa e foram para uma lanchonete ali por perto. 

Como come feio, uma pessoa quando está faminta. Devorou apressada três pastéis com duas xícaras de café-com-leite, e pediu mais. 

Disse que se chamava Florinda. Bem que era uma flor, e se descansasse seria linda também. Afirmou que fora expulsa de casa por conta de uma gravidez e um aborto feito às pressas. “ - Cidade pequena, pai antigo e conservador, sabes?” E que o 'causador' da gravidez, assustado com as ameaças, sumiu sem deixar rastro. 

Levou a Florinda para o seu apartamento. Um achado! Ela tomou banho, vestiu uma bermuda e uma camisa de homem e uns chinelos enormes de borracha. Lavou no tanque o vestido de seda e a minúscula calcinha vermelha, e limpou as tiras das sandálias prateadas. Deitou no sofá e dormiu com a televisão ligada na novela, depois do jornal. Ele olhava aquele corpo magro, comprido, bonito de se ver, e teve vontade de beijá-la. 

Bem que podia acontecer, pensou. Afinal, cinquentão, solitário há muito tempo, aposentado. Bem que podia acontecer e a Florinda ser a sua salvação. Bem que podia! Um socorreria o outro, como é do jeito que sempre acontece na vida. Sempre um está salvando o outro. Um escora, o outro segura. Parece que estamos sempre correndo perigo. Quase ninguém sabe viver sozinho. 

No outro dia foram no shopping comprar roupas. Como ficou jeitosa a Florinda arrumada; mais tranquila, cresceu a estampa da guria. Depois almoçaram no restaurante. Ela demostrou intimidade com os talhares e dizia coisa com coisa. 

“ - Queres morar comigo e ser minha mulher, Florinda?” Ela quase se engasgou com o cafezinho e olhou para ele como se precisasse muito daquela pergunta. 

Viveram juntos por aproximadamente três semanas. Estava indo bem a parceria, até que apareceu o Tobias, o rapaz que lhe havia engravidado. 

Mais uns dias, lá se foi ele de volta passear na praça. Ali, sempre aparece uma surpresa boa. Bem verdade, que tudo passageiro, nada definitivo. Porque, todo mundo sempre tem um pedaço de si, preso num gancho do passado.

POR CINCO DIAS DE AMOR

Verão. Praia. Sol. Noite. Movimento. Festa e gente bonita. O mundo aquele era só felicidade. Ali, ninguém tinha problemas. Estes, se haviam, ficaram guardados, chaveados num cofre, lá no lugar de onde toda aquela gente veio. 

Conheci uma moça linda. Chegara com seus amigos de Belo Horizonte. Alugaram um ônibus e partiram para as praias de Santa Catarina, comemorar a formatura no curso de Medicina. 

Ficamos juntos, eu e a Suzana por cinco dias, e as noites inteiras também. Depois conheci as suas colegas; as amigas da sua turma. E nos divertimos juntos. Às vezes. Nem sempre. Porque já éramos um casal formado às pressas pela urgência da atração, e precisávamos de longos momentos de intimidade, que aquele breve, inesperado e intenso relacionamento, de nós, tanto exigia. 

Foi um daqueles romances que acontecem nos verões, nas areias, nos bares; embaixo do sol e testemunhados pela lua. Amores que duram apenas aquele período e depois se terminam. Viram farelo ou estrelas luminosas na lembrança da gente. 

Mas que a Suzana e eu já estávamos apaixonados um pelo outro, ah, isso, tínhamos certeza. E os outros também. Durante aqueles cinco dias, onde um estava, junto estava o outro; bem agarradinhos, aos beijos e abraços. Quem olhasse, pensaria: “ - como se dá bem aquele casal de namorados. Um foi feito para o outro! Serão felizes para sempre!” 

Acordamos numa manhã iluminada. Entramos no carro e ficamos dois dias e duas noites longe do seu pessoal. Fui mostrar para a Suzana os lugares mais bonitos da terra. Andamos por Itapema, Bombinhas, Zimbros, Canto Grande e Tainhas. Na praia do Retiro dos Padres permanecemos uma tarde inteira e dormimos, se é que dormimos à noite em um hotel antigo que havia por lá; um palácio para nós dois. Ela, extasiada diante de tanta beleza criada pela natureza; eu, deslumbrado por toda a beleza dela. Nós dois liquidados pelos constantes exercícios dos prazeres amorosos. 

Quase que ela me prometeu voltar de Minas Gerais para ficar comigo. Quase que eu fui de mudança para ficar com ela. Nem sei porque uma dessas viagens não aconteceu. 

Domingo, já quase anoitecendo, todos reunidos na frente do hotel em Balneário Camboriú, prontos para partirem. A turma dentro do ônibus, menos a Suzana que estava ocupada comigo, ali sobre a calçada. Beijos, beijos e mais beijos e abraços de despedida, com uma ilhazinha ali na nossa frente, fazendo o cenário exato para o que entre nós acontecia. As suas colegas gritavam para mim: “ - vem, vem, vem; vem, embarca e vem!” 

A Suzana entrou no ônibus. Pedi para o motorista esperar mais um pouco. Ele gentil e conivente com o que via, abriu a porta. Entrei, abracei a Suzana e nos beijamos em pé no corredor. E choramos nós dois. E vi lágrimas no rosto das suas amigas. 

Sempre choro nas despedidas. É porque não sei me despedir direito. Sou muito fraco na hora de dizer adeus. Me emociono, me engasgo, choro e não consigo falar palavras bonitas. E eu nunca mais soube nada da vida da Suzana. 

Um grande amor de cinco dias!! Mas uma certeza eu tenho: é a Suzana, a médica mais linda que existe por lá. E tenho também outra certeza: que de vez em quando ela se distrai, com o queixo descansando na concha da mão, e atira os olhos para o passado para reviver aqueles cinco dias. E fica saudosa, bem fêmea, toda delicada, fazendo um leve sorriso com o canto da boca, lembrando de nós dois. 

É nesses instantes de ausência, que o homem que por ela se apaixonou, o seu marido, deve dizer: “ - por onde andas querida? Até onde foi este teu suspiro? Voltes aqui para pertinho de mim. Vem, preciso tanto te abraçar!” 

Para a Suzana, a mulher mais doce e bonita deste mundo. Porque ninguém precisa mais do que cinco dias, para viver uma grande história de amor.

PREJUÍZO

Solteirão, o Armando guardava a caveira do pai sobre a estante, ao lado de uma antiga bíblia com capa de couro endurecida pelo tempo. 

Nos momentos de aperto abria o livro sagrado em uma página qualquer, lia em voz alta o primeiro versículo pescado aleatoriamente pela ponta do dedo indicador, e pedia, respeitoso, um conselho para a cabeça descarnada do velho. Depois fechava a bíblia, agradecia, e saía para cumprir suas obrigações. 

Passou a infância, a adolescência; veio a vida adulta, chegou a maturidade e o Armando sempre dependente das orientações do pai. Não tomava decisão sem que houvesse intervenção paterna. Não dava um passo sem que o pai não lhe dissesse o que fazer. Não possuía iniciativa para agir por conta própria. Por esse motivo jamais casou, porque mulher nenhuma estava à altura do Armando, de acordo com a crítica severa do velho general Alcides, caudilho de remotas revoluções; homem acostumado a mandar e se intrometer na vida de todo mundo. 

Certa noite, o Armando levou a Francisca, uma colega de trabalho, quarentona, que se dizia ainda virgem, sedenta por casamento, para conhecer o seu apartamento, já que estavam mantendo há alguns meses, sério e recatado namoro. 

Abriu a porta, ascendeu a luz da sala, sentaram no sofá. A Francisca percorreu os olhos pelo ambiente, e observadora como costumam ser as mulheres, quis saber daquela caveira. 

Formal e respeitoso, o Armando levantou-se, foi até a estante e dirigiu o olhar submisso para aquilo que havia restado do general Alcides Aguirre de Aguilar: “ - Pai! Esta aqui é a Francisca, a moça que vou casar! 

Falou, fez uma reverência e voltou para o lado da namorada, que curiosa, procurou compreender mais sobre tão estranha, e porque não, macabra forma de veneração. 

Foi quando de dentro da caveira saiu uma voz cavernosa que só ele ouviu: “ - vagabunda. Esta mulher é uma vagabunda, Armando! Uma oportunista. Não inventa de casar com esta aventureira. Vai te trair na primeira oportunidade!” 

Ele sentiu um tranco na alma, uma secura na língua, um arrepio no pescoço, procurou forças respirando fundo e disfarçou, como se nada tivesse escutado. 

No outro dia, por influência da Francisca, devolveu a caveira para o cemitério, guardou a bíblia numa gaveta e marcou data para o casamento. Mas ficou latejando na cabeça do Armando: “ vagabunda! Ela vai te trair na primeira oportunidade!”, enquanto pensava acovardado: “quanto prejuízo esse velho causou na minha vida!” 

Amanheceu enforcado no galho de uma majestosa figueira, na praça em frente do edifício.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

QUANDO A CHUVA PASSAR

O tempo está de chuva. Antes que anoiteça vou comprar um vinho bom; melhor, por precaução, dois, e telefonar para você passar a noite comigo. Ando me roendo, faz tempo, de uma saudade que não tem cura. Vou preparar o ambiente bem ao teu gosto e deixar na ponta da agulha as tuas músicas prediletas.

Vou trocar os lençóis e as fronhas dos travesseiros e colocar toalhas novas no banheiro. Ah, não posso esquecer de comprar flores para te receber e um ramo de orquídea para enfeitar a mesa de jantar. E que seja lilás, tua cor preferida.

E vou escrever um poema com dedicatória para você ter na carteira, junto com aquele outro bem antigo, que sei que ainda guardas, e que o visitas de vez em quando, nos dias que precisas recordar da parte boa da minha alma.

Antes que anoiteça, vou também atrás dos ingredientes para preparar aquela comidinha que tanto gostas. E vou colocar, distraidamente, sobre a mesinha de centro as nossas fotografias. Haverão elas de nos lembrar, com mais força, do quanto já fomos felizes. E vou apagar as luzes e ascender duas velas; e assim, na penumbra jantaremos. Hei de conseguir ser romântico desta vez.

Eu que fui ficando descuidado com nós dois, e deixei que a rotina tomasse conta. Eu que parei de te surpreender. Eu que não reguei o nosso jardim. Eu que permiti que o cansaço nos atingisse. Eu que um dia me acomodei e nunca mais fiz versos para você. Eu que te traí. Eu que matei o nosso amor. Eu que machuquei para sempre o teu rico coração. Eu que nunca soube amar para sempre. Eu, que agora preciso tanto te rever, nem que seja apenas para te pedir perdão.

Não sei se acreditarás em mim, já que muito te enganei, mas necessito tanto que você me ouça. E quando estivermos jantando e bebendo vinho, olharei dentro dos teus lindos olhos verdes e te pedirei, se necessário, implorarei, que fiques esta noite comigo. Porque hoje fiquei pequeno demais e este céu pesado está quase me sufocando.

É muito importante que venhas, minha querida. Nem que sirva, tão somente esta tua visita, para eu olhar o teu rosto, a tua pele, o teu corpo; escutar a tua voz, respirar o teu cheiro, assistir o teu sorriso, e poder segurar as tuas mãos, acariciar os teus dedos bonitos. E se possível for, encostar meus lábios nos teus, e ainda, seria o paraíso, se eu pudesse te abraçar bem forte para sentir todo o teu corpo no meu. E poderia morrer depois, se fizesse amor contigo.

Anoiteceu rápido demais e a chuva bate forte lá fora. Já passou a hora do jantar e nada de você chegar. Enfim, toca o telefone e você me diz que pensou muito, e que é melhor que não; que a gente não se reveja. Que devemos continuar assim, separados; por longe um do outro.

Abro uma garrafa de vinho. Olho as flores entristecidas, porque são tristes as flores quando estão distantes de uma mulher, e bebo meia garrafa com a sede dos desiludidos. Guardo a comida na geladeira, sento no sofá pronto para pagar mais esta promissória, das tantas que já paguei, escutando a música, aquela, que desde o começo, você elegeu como nossa. Agora, tudo é só castigo.

Amanhã, esta chuva vai passar!

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

CAÇADOR DE SONHOS

Preciso de matéria-prima. As notícias recebidas através dos sonhos estão entre as melhores. Os produtos nascidos dos sonhos são jóias raras não encontradas na crua realidade. As imagens e representações oníricas se diferenciam daquelas criadas pela imaginação ou pela fantasia, por pertenceram a outra fonte. São águas de outro rio. Águas das fontes dos desejos ou repulsas escondidas. O secreto de nós brota dentro do que sonhamos. É o inconsciente se manifestando. Por melhor que seja o que inventamos, jamais se igualará àquilo que os sonhos nos oferecem. É quando o impossível dá um grito, toma forma e se apropria da nossa consciência, ingressando vivo em nosso espírito, tal como experiência vivida. 

Não sou especialista em interpretação de sonhos. Não os compreendo muito bem. Apenas sonho. Dou estrada para eles caminharem. Sou uma tela em branco onde eles pintam as suas manifestações, com as tintas próprias de sua secreta e exclusiva substância. 

O difícil é aprisioná-los. Tê-los vivos na lembrança após acordar. São ariscos e fugidios, os sonhos. São pássaros, que se não tivermos habilidade, escapam fácil, nos deixando apenas com uma vaga recordação que se aproximaram, para sumirem batendo as asas, sem deixar rastro, em voo veloz, rumo para de onde vieram. 

Por saber da preciosidade dos seus conteúdos, me interessei em aprender a caçá-los. Me transformei em um caçador de sonhos. Procurei métodos e maneiras para não deixá-los escapar. Devo dizer que já evoluí satisfatoriamente. Domei a minha mente em acordar após um sonho e anotar numa folha de papel que deixo na beira da cama, como se fosse um alçapão, pronto para aprisioná-los. Engaiolar esses canários multicoloridos, habitantes de outra dimensão desconhecida. Assim, muitos deles, os sonhos que retive, depois de trabalhados transformam-se em textos inteiros ou em parágrafos de contos e crônicas. Sirvo-me deles. Até porque, os seus conteúdos são diversos dos nascidos da imaginação, da invencionice, por mais criativas ou delirante que sejam estas. Os sonhos trazem uma espécie de realidade que não conseguimos inventar. Não é o sonho um delírio, mas uma vivência encantada, registrada por uma lente de origem misteriosa, que a consciência, por mais fantasiosa que seja, jamais alcançará. É um acontecimento, uma luz vinda das ocultas nuvens da alma. 

De uns tempos para cá investi no treinamento mental para sonhar sobre determinado assunto, lugar ou acontecimento. Não é que vem dando certo! Nem sempre, é claro. Mas às vezes me surpreendo em ter sonhado exatamente com a ideia, que antes de adormecer, eu havia plantado na memória. Estou encantado com esta descoberta. Confesso que já ando conseguindo viajar, revistando situações antigas da minha vida, através deste artifício. 

Agora que estou me tornando em um perseguidor, melhor, em um caçador de sonhos, adquiri outro território para explorar. Já me sinto um bandeirante, um garimpeiro, ou um apanhador de invulgares insetos, que eventualmente consegue ter nas mãos uma pedra de valor ou uma borboleta com asas de rara beleza. 

Sonhar, é assistir dentro de nós uma espécie de relâmpago; um clarão vivo e intenso, um transe fugaz de imagens impossíveis, com a duração de acender um fósforo, porém, com o poder de deixar impregnado em nossas mentes, as peripécias em que fomos envolvidos. Além do mais, é o sonho a melhor parte do sono. Dormir sem sonhar é apenas descansar. É não sair do corpo para viajar para dentro de um outro mundo dono de formas estranhas e desconhecidas. O sono é apenas o veículo que usamos para sonhar, possibilitando que nossas intelecto ou espíritos alcancem o que está fora de nós; distante dos nossos olhos, longe dos nossos pensamentos, impalpável do nosso tato. No sonho, o abstrato se materializa. O imaterial adquire forma. A ausência se apresenta. O milagre de outra vida acontece. 

Preciso de matéria-prima. E esta que o sonho me oferece, é daquelas que mais gosto de ir buscar.

A VACA

A Cláudia é uma vaca. Vaca! Vaca! Vaca! É isso que ela é. Uma vaca safada! Isso! Uma vagabunda. Uma vaca vadia. Descarada. Uma prostituta imunda. É isso que ela é, gritava o Antunes no hall de entrada do prédio ao saber que a Cláudia havia ido embora com o moto-boy, o entregador de pizza. 

E assim, inconsolável, gritando palavrões, com tremores generalizados, histérico, arranhando os braços, mordendo os lábios, até que o síndico e outros moradores vieram para acalmá-lo. A dona Zizinha do térreo, trouxe água com açúcar, o Seu Bento do 1º veio com um chá de camomila, a Dona Francisca do 3º apareceu com uns comprimidinhos que ela usa pra se tranquilizar, e nada do Antunes sossegar. 

Eu não quero tomar chá nem remédio. Eu preciso é de uma garrafa de cachaça e um 38, berrava o Antunes desesperado. Vou matar aquela desgraçada. Aquela vaca nojenta. Vaca! Vaca! Vaca, gritava sem parar, batendo forte com os pés no chão. Bem que eu desconfiei da quantia de caixas de pizza lá em casa. De todos os sabores. De todos os tamanhos. Não aguento mais enxergar pizza. Nem sentir o cheiro. Enjoei pra sempre, e aquela vaca dê-lhe comprar mais. Dê-lhe portuguesa, calabresa, com tomates secos, com queijos e mais queijos, com catupiri e sem catupiri, com borda recheada e sem borda recheada, mais aquelas adocicadas. E aquelas de banana com gemada, credo, que horror. 

Vou matar aquela vaca nojenta que me encheu de pizza só pra agradar aquele motoboy f.d.p. Aliás não vou matar só a vaca da Cláudia, vou matar também o motoqueiro e botar fogo naquela moto de bosta. 

Depois, de tanto xingar a Cláudia, o Antunes foi se acalmando, se acalmando, relaxando, se apagando, sentou na poltrona ao lado da portaria, sob os olhares de compaixão do zelador, do síndico, da Dona Zizinha, do seu Bento, da Dona Francisca e de todos os outros moradores que desceram dos quinze andares pra conferir o motivo daquela gritaria. 

E dormiu o Antunes. Dormiu de boca aberta, babando queixo abaixo por quase uma hora, enquanto todos comentavam a fuga da Cláudia com o motoqueiro. Em pouco tempo o caso virou fofoca na quadra inteira. Já havia uma aglomeração de curiosos na calçada espiando através das grades da frente do prédio, a situação ridícula do homem abandonado. “ - É, fugiu com entregador de pizza, dizia a Dona Zizinha, a maior fofoqueira do edifício, com um sorrisinho matreiro, escondido com as palmas das mãos. 

Quando já estava todo mundo se retirando o Antunes abriu os olhos, pulou da poltrona, olhou em volta, colocou as mãos no rosto, se arranhou com as unhas compridas e bem tratadas que usava e gritou: vaca! Vaca! Vaca! Vagabunda! Mil vezes vaca. É isso que ela é... e se calou. 

“ - Gente, começou tudo de novo”, gritou a Dona Zizinha, avisando o pessoal que já estava indo embora. 

O Antunes fungou forte e aspirou um catarro que estava preso na garganta e um ranho frouxo do nariz, e deixou sair pelos olhos as lágrimas de uma tristeza infinita, e sem se importar com quem estava por perto, disse, com o tom de voz das almas recém traídas: “ - Não. Não e não. Não pode ser verdade. Quem ama aquele moto-boy sou eu. Muito mais do que aquela vaca da Cláudia. De verdade, só eu amo aquele rapaz. Lindooo!” 

A Dona Zizinha, não aguentou e explodiu numa grande gargalhada. Todos os presentes riam daquele inusitado dramalhão. O Seu Bento teve um acesso de tosse. A Dona Francisca sofreu mais um ataque de nervosismo. Lá fora, junto as grades, em coro o povo gritava: bicha! Bicha! Bicha! 

Só o Antunes Chorava.

ANOS DE CHUMBO


Domingo. Início dos anos 70. Tarde chuvosa, fria e escura de um inverno rigoroso. Próximo da capital, o Vilson e o Nenê pararam o carro na frente de um armazém, na beira de uma estrada deserta de chão batido. No balcão de tábua rústica pediram dois aperitivos para esquentar o corpo.
Nem olharam para os lados, quando o Moreira vestindo uma gabardine e terno pretos, perguntou:
“ - De onde vocês estão vindo?”
“ - Da casa dos meus pais.”
“ - Moram aqui perto?”
“ - Logo ali, depois da curva. Atrás daquela coxilha, numa casinha branca, com dois cinamomos na frente.”
“ - São irmãos?”
“ - Não. O Nenê é meu colega.”
“ - Trabalham onde?”
“ - No porto.”
“ - Ah, no porto?!”
“ - Sim no porto!”
“ - Estivadores?”
“ - Não no escritório.”
Foi quando o Fonseca, sujeito forte e mal encarado, também vestindo terno, impermeável e chapéu pretos, enfiou entre os dedos da mão direita uma soqueira de ferro cromado, se aproximou dos dois e disse:
“ - No sindicato?”
“ - Mais ou menos”, respondeu o Nenê.
“ - Mais ou menos?! Como, mais ou menos?! É no sindicato ou não é?”
“ - Sim. Somos escriturários. Datilografamos o movimento do pessoal.”
“ - São do partidão?”
“ - Não. Não! Somos apenas funcionários.”
“ - Mas lá, todos são do partidão!”
“ - Nós não. Somos datilógrafos.”
“ - Não. Não! Lá no sindicato só trabalham os camaradas do partidão!” Falou grosso o Fonseca.
“ - E o Júlio onde anda?” Perguntou o Moreira, chegando mais perto do Vilson e do Nenê.
“ - Júlio? Que Júlio?” Responderam os dois ao mesmo tempo. - “ Não conhecemos nenhum Júlio.”
“ - Fecha as portas e as janelas do armazém”, ordenou o Moreira para o Samuel, dono do estabelecimento.
O Moreira e o Fonseca retiraram os chapéus, os sobretudos, os paletós, arregaçaram as mangas das camisas brancas, encostaram os olhos nos olhos do Vilson e do Nenê:
“ - Quer dizer que não conhecem o Júlio? Pensam que nós somos otários, seus comunistas de merda?”
Começou uma sessão de pancadaria com cassetes, socos e pontapés por mais de 30 minutos. Depois ficaram o Vilson e o Nenê deitados, encolhidos no chão, destroçados, sobre uma imensidão de sangue.
O Moreira sacou do 44, e o Fonseca também, depois de arrancar a soqueira da mão.
“ - E o Júlio, porra? Onde está o Júlio? Fala, comunista desgraçado!” Forçou com cara e alma de bandido, o Moreira.
“ - Não sei. Não sabemos! Não conhecemos nenhum Júlio! Nunca ouvi falar.” Respondeu o Vilson gemendo baixinho, com o rosto deformado; já sem os dentes da frente, assoprando uma gosma avermelhada.
Dois tiros. Em seguida, mais dois disparos completaram o serviço nas cabeças do Vilson e do Nenê.
O Moreira olhou para o Samuel e disse: “ - Coloca os corpos no automóvel deles, com muita gasolina e atira o carro no barranco de sempre. E depois lava esse assoalho e não deixa um fio de sangue. E se te perguntarem alguma coisa, tu não viu nada. Tu nunca ouviu nem viu nada! E qualquer movimento estranho, nos comunica. Continua nos mantendo informados. Entendeu?
“ - Claro. Sim senhor!”, respondeu subserviente o Samuel.
Entraram na camionete Veraneio, que estava escondida nos fundos do armazém do Samuel, seguiram pela estrada de chão, fizeram a curva, passaram a coxilha, estacionaram embaixo dos dois pés de cinamomos, bem na frente da casinha branca. Desceram, e o Moreira gritou:
“ - Júlio!”
Avançaram em direção a porta.
E o Moreira gritou de novo:
“ - Júlio! Júlio! Abre a bosta dessa porta, Júlio!
A porta continuou fechada. O Fonseca deu um empurrão com o ombro e as duas folhas se abriram.
Entraram com os 44 em punho, e de imediato, na cozinha, deu-se um estampido.
Lá fora, a chuva batia forte e o sol continuava escondido atrás das nuvens negras, que anunciavam uma longa e assustadora escuridão.