sábado, 30 de novembro de 2013

AMOR BANDIDO

Noite na praça, ajuntamento dos que perderam. Bêbados, mendigos, prostitutas velhas e velhos doentes, drogados de todas as idades se amontoam bebendo cachaça, tossindo deitados em tapetes de papelão. Aldeia dos derrotados. É a sociedade dos esquecidos, dos marginalizados, que corre ao lado desta outra que se tem por digna, feliz, higienizada e exemplar; bem arrumadinha. 

Um deles que faz papel de esposa, está enrolado num pedaço de pano lilás para servir de saia e outro retalho amarrado no peito querendo ser sutiã. Sandália velha de saltinho folgada no pé e os lábios lambuzados de batom encarnado. Unhas compridas imundas pintadas de vermelho. Brincos de argola, colares, pulseiras e anéis encontrados no lixo. Rude indumentária feminina revestindo corpo rijo de homem. Gestos e fome de fêmea dentro do corpo forte de macho. Físico de quem já trabalhou no pesado precisando renascer mulher. Dedos encardidos que seguram preciosa lata de alumínio, por onde fuma desesperado a pedra do alívio, da redenção, do esquecimento; do sonho, talvez. Ou da morte. 

De repente seu companheiro se aproxima com jeitão de bandido mandão, o baixinho, cheio de pose de valentão, com outra lata grudada nos beiços. Estufa o peito, arma o braço e lhe dá um soco na cara, mais outro no queixo, mais uma porrada no meio da boca seguido por um violento direto no nariz. O travesti cai gemendo. Recebe mais coices nas costelas, no peito, no pescoço. 

Rola no calçamento frio urrando de dor. Chora as lágrimas de quem apanha. De quem sempre foi surrado pela vida e que deu depois da paixão para apanhar de marido. Encolhe-se em posição fetal, soluça baixinho como se estivesse no colo da mãe que nunca teve, com os olhos atirados, quase santos para os pés do amante, que lhe dá, um, dois, três, quatro chutes na cabeça. 

Os habitantes da praça olham e não reagem, acostumados com brutalidade e selvageria. Desta vez não foi com um deles; que sorte! A regra na vida sempre mandou dizer, que não importa onde alguém esteja; seja no ápice, no meio, na base ou enterrado no barro podre do subsolo da pirâmide social, é lei, que em briga de casal ninguém deve se intrometer. Que resolvam por si as suas encrencas. 

O travesti levanta a cabeça do chão, busca os olhos do amante, diz que está com sede. Ele alcança meia garrafa de aguardente vagabunda que é sugada em goles que estouram na garganta. O homem senta ao lado do travesti e faz uma cara de felicidade. O travesti que atende por Flor sorri e se abraça no parceiro, que diz se chamar Rei, rei de Reimundo; é o que sempre explicou, desajeitado, sem ter bem certeza do que fala. 

Abraçados, corpos sujos, suados, fedorentos, deslizam colados um no outro degraus abaixo da escadaria e se beijam apaixonados no meio do jardim. Sem rancor, sem raiva, sem ressentimentos. Só paixão; tesão da pura. 

Os dois, protegidos pelas folhagens, com as bocas tingidas de sangue continuavam se beijando. Os braços se agitam nervosos, as mãos alisam pernas, peitos, e apertam demoradamente as partes um do outro, quando ele, a Flor, afasta o rosto e diz no ouvido do Reimundo: 

- Perdão Amor! 

- Que nada minha Flor. Esquece. Não aconteceu nada! 

Depois fizeram amor, ali embaixo das estrelas.

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