sábado, 30 de novembro de 2013

A JAPONA DO BRECHÓ

Tarde enferruscada de um inverno malvado, com pouco agasalho, Arcádio procurou um brechó, atrás de uma japona grossa, de lã pura, para espantar o frio. 

Encontrou uma, de cardadura natural, mesclada com filaças torcidas, tingidas de marrom, e outras brancas, da cor que brota do couro da ovelha; já meio surrada, um pouco grande; além do seu corpo. 

Mas com o escasso dinheiro que era dono, tinha que ser aquela, ou trincar os dentes por levar os relhaços do Minuano na cara. E foi dentro dela morar. 

Vestiu, e se foi rua afora. Ombros encolhidos, grudados no pescoço, gola levantada acima das orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos, como dois bichos enfurnados em suas tocas. 

E o vento zunindo, desgovernado, sem patrão. 

Sentiu-se gente de novo, metido dentro daquela moradia quentinha. Sorriu contente pelo aconchego da nova proteção. 

De tão feliz que estava caminhou tanto que esqueceu de parar. Só parou no banco da praça, com as barras do amanhecer anunciando que outro dia vinha chegando, novinho em folha. 

Deitou e dormiu, e no meio do sono sentiu uma sensação estranha; no corpo e na alma. 

No corpo, uns arrepios, de um arzinho assoprado, e na alma, uma outra coisa estranha se mexendo junto. Parecia que tinha outro por dentro. 

Sentou-se no banco de cimento, e soube, que quando se cobriu com a japona do brechó, vestiu junto os eflúvios, do outro, que antes ali vivia. Aquele, que com ela se vestia. 

Entendeu, que a japona estava forrada, não de tecido, mas da alma do antigo habitante. 

E se deu por conta, vestido com aquela roupa de segunda mão, que as vestes daqueles que morrem ficam impregnadas de suas almas. Compreendeu, que quando usamos a roupa de quem já morreu, vestimos também o seu fantasma; a parte do defunto que não morre nunca. Que ficamos com a alma do outro, misturada com a que já temos, feito um encosto a nos atarantar. Associa-se, se amalgamando em uma estranha liga, a energia que está entranhada nas costuras, nas pregas e fios das vestiduras do falecido, e vem se fundir com a outra energia que está aprisionada em nosso corpo. 

Derrepente, já final de tarde, deu por si, e morrediço estava a caminho de um cemitério, empurrado por um vento misterioso; um outro vento; levado sem saber por quem. 

Comprou da florista, a mando do inconsciente, um crisântemo amarelo, com a única moeda que sobrou, e viu-se diante de um túmulo bem acabado; onde pescou com os olhos, no retrato grudado no mármore, a figura de um velho sorridente, que parecia lhe cumprimentar. 

Deteve-se com atenção na fisionomia do morto, e observou surpreso, que o defunto estava usando a mesma jaqueta, recém adquirida. 

Foi quando estranhou uma batida forte no ombro. 

Tomado inesperadamente por um pavor que lhe paralizou os movimentos, arrepiando todos os pelos, endurecendo a face e trancando o maxilar; que apesar do frio cortante que atravessava os ossos, sentiu um suor amornado correr rosto abaixo. 

Entretanto, nada de sobrenatural, naquele entardecer de nuvens pretas arrodeando tontas pelo céu. Era apenas o porteiro avisando que estava na hora de fechar os portões do cemitério. 

Retirou a jaqueta do corpo, a atirou por cima da cruz da sepultura, devolvendo-a para o seu antigo dono, e saiu à rua, batendo queixo, de frio e medo, e cabisbaixo o Arcádio pensou: “- bem-feito. Quem foi que te mandou usar roupa de gente que já morreu!”

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