sábado, 30 de novembro de 2013

VIVER, DEPOIS ESCREVER

O apartamento estava uma bagunça. Cinzeiros transbordando, a cama de casal desarrumada. Diante da janela, na escrivaninha, rascunhos, folhas amassadas e outras em branco e as contas de luz, aluguel e condomínio vencidas. Sobre o sofá uma mala vermelha estufada com sandálias, tênis, vestidos, blusas, saias, camisetas, sutiãs, perfumes e um casaco estampado e uma revista de moda.

Ouve-se um barulho na porta e após insistentes batidas, João Francisco, meio depressivo, sonolento, tentando curar a quinta ressaca consecutiva, vê pelo olho mágico a imagem da sua Antônia.

– Vim buscar as minhas coisas, Francisco!

– Não faça isso querida. Vamos tentar mais uma vez!

– Nada de tentar outra vez! Não aguento mais essa tua vida. Olha só a sujeira deste apartamento. Depois que resolveste ser escritor, só te preocupas com isso, Francisco! As demais atividades importantes, e eu principalmente, fomos deixadas de lado. Chega! Não quero saber de ti e desses teus escritos malditos.

– Antônia, eu te prometo, eu juro por tudo que é mais sagrado que vou mudar. Vou arrumar um trabalho fixo, vou te levar ao cinema, ao teatro. Vamos passear novamente de mãos dadas pelos parques da cidade como dois apaixonados namorados. E só vou escrever, de hoje até o dia da minha morte, não mais do que quinze minutos por dia. Podes acreditar Antônia, vou disciplinar a minha vida. Vou ser outro homem!

– Quantas vezes já me prometeste essas mudanças, João Francisco? Quantas? Dez, cem, milhares de vezes, e continuas o mesmo egoísta, relaxado e desatencioso de sempre. Tu só amas a literatura e essas ideias malucas que a toda hora, incessantes tal um olho d'água brotam desta tua cabeça irresponsável. Cabeçudo! Cabeçudo! Tchau, tchau e tchau. Tchau pra sempre, cabeçudão. Devoraste a minha juventude, seu canalha! Todas as minhas carnes se consumiram nas tuas mãos, desgraçado!

Foi até o sofá, decidida e braba como nunca, pegou a mala vermelha, o casaco estampado, a revista de moda e sem olhar para trás bateu a porta nas fuças do Francisco.

Ele foi até escrivaninha, sentou-se, apoiou o queixo dentro da concha da mão esquerda e pensou: “Tá bem! Ela se foi, mas me deixou um bom enleio cheio de altos e baixos; encontros bonitos, brigas e reconciliações. Separações e reencontros. Foi muito instável esse relacionamento! Mas, quem sabe, esta não seja a história que eu sempre procurei? Afinal, só o que dá errado pode render uma boa trama!”

Olhou pela janela e viu a praça com os ipês e os jacarandás floridos, e os sabiás trinando suas canções de acasalamento e sentiu o ar gostoso da primavera bater suave no rosto e invadir a sua alma.

Com um renovado vigor, abriu um cabernet antigo, pegou a caneta e foi tentar escrever o livro da sua vida.

Então fez vibrar a ponta da pena que lascou quente no papel, o título: “primeiro viver, para depois escrever.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário