terça-feira, 12 de novembro de 2013

PREJUÍZO

Solteirão, o Armando guardava a caveira do pai sobre a estante, ao lado de uma antiga bíblia com capa de couro endurecida pelo tempo. 

Nos momentos de aperto abria o livro sagrado em uma página qualquer, lia em voz alta o primeiro versículo pescado aleatoriamente pela ponta do dedo indicador, e pedia, respeitoso, um conselho para a cabeça descarnada do velho. Depois fechava a bíblia, agradecia, e saía para cumprir suas obrigações. 

Passou a infância, a adolescência; veio a vida adulta, chegou a maturidade e o Armando sempre dependente das orientações do pai. Não tomava decisão sem que houvesse intervenção paterna. Não dava um passo sem que o pai não lhe dissesse o que fazer. Não possuía iniciativa para agir por conta própria. Por esse motivo jamais casou, porque mulher nenhuma estava à altura do Armando, de acordo com a crítica severa do velho general Alcides, caudilho de remotas revoluções; homem acostumado a mandar e se intrometer na vida de todo mundo. 

Certa noite, o Armando levou a Francisca, uma colega de trabalho, quarentona, que se dizia ainda virgem, sedenta por casamento, para conhecer o seu apartamento, já que estavam mantendo há alguns meses, sério e recatado namoro. 

Abriu a porta, ascendeu a luz da sala, sentaram no sofá. A Francisca percorreu os olhos pelo ambiente, e observadora como costumam ser as mulheres, quis saber daquela caveira. 

Formal e respeitoso, o Armando levantou-se, foi até a estante e dirigiu o olhar submisso para aquilo que havia restado do general Alcides Aguirre de Aguilar: “ - Pai! Esta aqui é a Francisca, a moça que vou casar! 

Falou, fez uma reverência e voltou para o lado da namorada, que curiosa, procurou compreender mais sobre tão estranha, e porque não, macabra forma de veneração. 

Foi quando de dentro da caveira saiu uma voz cavernosa que só ele ouviu: “ - vagabunda. Esta mulher é uma vagabunda, Armando! Uma oportunista. Não inventa de casar com esta aventureira. Vai te trair na primeira oportunidade!” 

Ele sentiu um tranco na alma, uma secura na língua, um arrepio no pescoço, procurou forças respirando fundo e disfarçou, como se nada tivesse escutado. 

No outro dia, por influência da Francisca, devolveu a caveira para o cemitério, guardou a bíblia numa gaveta e marcou data para o casamento. Mas ficou latejando na cabeça do Armando: “ vagabunda! Ela vai te trair na primeira oportunidade!”, enquanto pensava acovardado: “quanto prejuízo esse velho causou na minha vida!” 

Amanheceu enforcado no galho de uma majestosa figueira, na praça em frente do edifício.

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