quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

ESTA GENTE MENTIROSA

Sem vocação para ser astronauta, costureiro, vidente ou feiticeiro, gerente de banco, dono de igreja, agiota ou vereador, bem como sem nenhum pendor pelas demais profissões de relevância, me restou ser garimpeiro de palavras. Me envolvo em juntá-las com a intenção de construir frases que mereçam ser escritas. É com elas que luto, atravessando longas e indormidas madrugadas. Tornar-me escriba foi a parte que me tocou, ao invés de me esforçar em outros mais estáveis, renomados e rendosos afazeres.

Assim, desprovido de talentos, desde que sei de mim vejo-me solitário, debruçado sobre uma mesa diante de uma folha de papel em branco, com uma caneta bic entre os dedos, espremendo a cabeça no afã de escrever histórias que o leitor não abandone antes do final. Dar vida aos personagens que me imploram para nascer, e desta forma, vivos, terem a única oportunidade de falarem sobre suas existências, tornou-se uma imposição, ao contrário de um mero ofício, ou ainda, muito além de um simples convite da alma para o diletante exercício de uma atividade eventual.

Incontáveis vezes ao longo da vida pensei em abandonar esta obrigação de ter que escrever. Prometi mil vezes e não cumpri. Sempre voltei à senzala tal um arrependido escravo fugitivo.

Mais tarde percebi que aquilo que eu pretendia renunciar, seria a minha salvação. Estou salvo, pelo menos até hoje, graças à imaginação, ao sonho; essa loucura de ter que deixar no papel os casos que preciso contar. Foi a ficção, a invenção, mais a realidade que vi, que vivi e que registrei, enfim, a literatura, que deram sentido à minha vida. Tanto o que li quanto o que escrevi, trouxeram um milagre à minha existência. Se não fosse por esses meios, já teria sucumbido. É apenas escrevendo que me sinto livre, independente, com autoridade plena para dizer tudo que digo. Quando escrevo sinto as minhas asas se abrirem para o infinito em tão indispensável voo. É quando consigo ser dono absoluto de mim. Não preciso de ninguém. Sou proprietário dos pequenos mundos que construo. Coloco, quando necessário, na boca dos personagens, as falas que não diria se usasse a primeira pessoa, e que de outra maneira jamais seriam ditas.

Nos momentos que estou envolvido com uma história, quando entro no universo da fantasia, exijo de mim, inventar, usando pincéis que mergulhem suas pontas nas tintas retiradas dos dramas que vivemos. Quando falo de fatos e pessoas reais, não permito que exista um distanciamento de suas vidas; tenho que ser verdadeiro. E nas vezes que digo de mim, não tenho receio em contar das minhas fraquezas e derrotas; abro o peito, mostro o coração. Deixo que me conheçam.

Mas aqui vai uma aparente contradição: sempre que pretendo refazer a vida, recrio-a a meu modo, da maneira que eu desejo que os meus personagens vivam; do jeito que eu queria que a vida fosse. Afinal, são os personagens, tão somente criaturas, mas que até poderão, que ironia, viverem mais tempo e serem melhores e terem mais importância, consistência e renome que o seu criador. É o grito do homem ecoando além da sepultura, quando as criações se tornam mais dignas e longevas que seus criadores.

Recebo notícias que meus dizeres levam distração, inquietação, e às vezes reflexão aos estimados leitores, que me honram por demais com suas preciosas atenções. Me realizo quando o barro que sovei foi bem aceito; que não entreguei um tijolo inútil. No entanto, não escrevo especificamente para alguém. Escrevo porque escrevendo me sinto vivo. Escrevo diariamente, porque todos os dias tenho que me livrar da morte; do vazio, do tédio, da inutilidade. Preciso me salvar a cada dia que nasce, assim como um corpo enfermo que necessita da salvadora dose de sua medicação de uso continuado. Somos, eu e o doente, e perdão aos que me leem, mas todos nós, as mesmas figuras humanas: tão frágeis, tão breves, tão aflitas, tão miseráveis buscando desesperadamente uma saída para as nossas dores e angústias. 

Finalmente terminei o texto acima. Disse algumas verdades minhas do ato de escrever. Porém me restou uma sensação estranha, melhor, uma evidente certeza, de que fui mentiroso quando pretendi ser sincero. Porque como bem disse Fernando Pessoa, que “o poeta é um fingidor...”, uma vez que é através da criatividade e da imaginação que ele se escapa; que sobrevive. E como é notório, que a literatura é o exercício da mentira, porque são os escritores, mentirosos profissionais; comigo é que não haveria de acontecer diferente.

Então, todo cuidado é pouco. Melhor não acreditar nos contadores de histórias, essas pessoas sem vocação para nada, que se utilizam da invencionice para tentarem ser alguém, enganando a pureza das boas almas dos leitores.



Para se salvarem, os escritores, nos seus romances, novelas, poesias e contos, são capazes de tudo, inclusive de inventarem as maiores mentiras já ditas sobre a terra. Gente muito falsa, os seres desta espécie. Por essas e por outras, é até aconselhável, ninguém conhecer pessoalmente os seus autores prediletos. Do contrário, vai haver decepção.

Nenhum comentário:

Postar um comentário