quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

COVARDIA

Cresceu dando murro em ponta de faca. Que a vida nunca lhe deu moleza, nem um copo de água fresca. Filho de prostituta de rua e de incerto pai viciado em baralho, cachaça e mulher de zona, vivia solto nas ruas e praças feito cachorro sem dono, esmolando, implorando, furtando ninharia. E dormia nas calçadas porque no casebre o que precisava não havia.

Mais taludo, até que deu para andar na linha. Foi trabalhar em obra, misturando cimento, padiolando tijolo, empurrando carrinho de mão. E por lá pernoitava de favor. O vigia se fazia que não enxergava. Foi duas vezes na igreja, se confessou com o padre, tentou aprender a rezar. Deu de costas para o altar: foi embora por falta de milagre.

Virou homem de rosto duro, corpo forte, atarracado. De poucas palavras e nenhum sorriso. Ganhou a alcunha de Bruto, único orgulho que sentia. Ignoravam seu nome, José, nas obras em que trabalhava. Valia o apelido, e pronto. Nem sequer sabia se possuía sobrenome e data de nascimento, muito menos quantos dentes inteiros sobrara na boca; pior ainda, se era alma aquela coisa que lhe batia por dentro. No abandono, via-se como se fosse apenas um bicho peludo que ainda se mexia, tal um cão, um gato, um morcego, um rato. Machucava a convicção que gente jamais seria.

De fato, muito bruto tornou-se o Bruto. Cresceu descrente, desconfiado, estúpido. Quase uma fera de tão valente. Revolta das brabas fervendo nos intestinos. Olhar arisco, enviesado, saindo espremido pelo rabo do olho. Para cometer um crime dos graúdos faltava pouco, que dos pequenos e médios fazia coleção. Prometia, por um desagrado qualquer, puxar a peixeira, mestre nesta arma que era. Na verdade devolvia para o mundo a amargura que o mundo lhe presenteou. Olho por olho, dente por dente da lei de Talião que nunca ouvira falar; único idioma que muito bem entendia. Rudeza viva atrás de vingança.

Certa feita, domingo de tarde, acordou revoltado porque lembrou não ter pai nem mãe que prestasse, nem mulher para se deitar, filho nenhum para acariciar. Derrotado, pensou em suicídio. Faltou coragem. Covardia nojenta. Ressaca do inferno.

Anoiteceu, saiu para encher a cara, desta vez precisando arrumar encrenca. Alguém seria escolhido para aplacar aquela agonia sem fim. Ajeitou a carneadeira na cintura por baixo da camisa e se mandou para a espelunca fedorenta do boteco do Ananias. Só ralé bebendo cachaça, discutindo porcaria de assunto.

Lá pelo quinto ou sexto liso de pura encasquetou com um mulato com talho de meio palmo na cara. Disse, com a faca presa na mão, assim do nada para o negro: “ - vou te cortar no outro lado. Assim tu fica parelho!” O crioulo, forte como um búfalo, que para flor também não servia, respeitada autoridade no uso do ferro branco, deu passo e meio para trás, puxou da adaga que brilhou na fraca luz enuviada de fumaça e partiu para cima do Bruto. A assistência abriu um clarão. Afastaram mesas e cadeiras e apostaram forte no Bruto.

Foi mais fácil do que imaginava. O negro, num rápido movimento, ameaçou atacar por baixo, o Bruto se abaixou para defender as partes e levou bem no meio do peito, de baixo para cima, um pouquinho para a esquerda, a punhalada fatal.

Caiu no chão amolecido. Antes do último suspiro, com uma ruguinha de sorriso no canto da boca, olhou sereno no rumo do mulato e disse com a voz pastosa: “ - obrigado, negro velho. Tinha que ser hoje. Eu não aguentava mais esta vida desgraçada!” 

De posse do bilhete de volta, deu um estirão na perna, fechou os olhos e viajou.

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