Domingo.
Início dos anos 70. Tarde chuvosa, fria e escura de um inverno
rigoroso. Próximo da capital, o Vilson e o Nenê pararam o carro na
frente de um armazém, na beira de uma estrada deserta de chão
batido. No balcão de tábua rústica pediram dois aperitivos para
esquentar o corpo.
Nem
olharam para os lados, quando o Moreira vestindo uma gabardine e
terno pretos, perguntou:
“ - De
onde vocês estão vindo?”
“ - Da
casa dos meus pais.”
“ -
Moram aqui perto?”
“ -
Logo ali, depois da curva. Atrás daquela coxilha, numa casinha
branca, com dois cinamomos na frente.”
“ -
São irmãos?”
“ -
Não. O Nenê é meu colega.”
“ -
Trabalham onde?”
“ -
No porto.”
“ -
Ah, no porto?!”
“ -
Sim no porto!”
“ -
Estivadores?”
“ -
Não no escritório.”
Foi
quando o Fonseca, sujeito forte e mal encarado, também vestindo
terno, impermeável e chapéu pretos, enfiou entre os dedos da mão
direita uma soqueira de ferro cromado, se aproximou dos dois e disse:
“ - No
sindicato?”
“ -
Mais ou menos”, respondeu o Nenê.
“ -
Mais ou menos?! Como, mais ou menos?! É no sindicato ou não é?”
“ -
Sim. Somos escriturários. Datilografamos o movimento do pessoal.”
“ -
São do partidão?”
“ -
Não. Não! Somos apenas funcionários.”
“ -
Mas lá, todos são do partidão!”
“ -
Nós não. Somos datilógrafos.”
“ -
Não. Não! Lá no sindicato só trabalham os camaradas do partidão!”
Falou grosso o Fonseca.
“ - E
o Júlio onde anda?” Perguntou o Moreira, chegando mais perto do
Vilson e do Nenê.
“ -
Júlio? Que Júlio?” Responderam os dois ao mesmo tempo. - “ Não
conhecemos nenhum Júlio.”
“ -
Fecha as portas e as janelas do armazém”, ordenou o Moreira para o
Samuel, dono do estabelecimento.
O
Moreira e o Fonseca retiraram os chapéus, os sobretudos, os paletós,
arregaçaram as mangas das camisas brancas, encostaram os olhos nos
olhos do Vilson e do Nenê:
“ -
Quer dizer que não conhecem o Júlio? Pensam que nós somos otários,
seus comunistas de merda?”
Começou
uma sessão de pancadaria com cassetes, socos e pontapés por mais de
30 minutos. Depois ficaram o Vilson e o Nenê deitados, encolhidos no
chão, destroçados, sobre uma imensidão de sangue.
O
Moreira sacou do 44, e o Fonseca também, depois de arrancar a
soqueira da mão.
“ - E
o Júlio, porra? Onde está o Júlio? Fala, comunista desgraçado!”
Forçou com cara e alma de bandido, o Moreira.
“ -
Não sei. Não sabemos! Não conhecemos nenhum Júlio! Nunca ouvi
falar.” Respondeu o Vilson gemendo baixinho, com o rosto deformado;
já sem os dentes da frente, assoprando uma gosma avermelhada.
Dois
tiros. Em seguida, mais dois disparos completaram o serviço nas
cabeças do Vilson e do Nenê.
O
Moreira olhou para o Samuel e disse: “ - Coloca os corpos no
automóvel deles, com muita gasolina e atira o carro no barranco de
sempre. E depois lava esse assoalho e não deixa um fio de sangue. E
se te perguntarem alguma coisa, tu não viu nada. Tu nunca ouviu nem
viu nada! E qualquer movimento estranho, nos comunica. Continua nos
mantendo informados. Entendeu?
“ -
Claro. Sim senhor!”, respondeu subserviente o Samuel.
Entraram
na camionete Veraneio, que estava escondida nos fundos do armazém do
Samuel, seguiram pela estrada de chão, fizeram a curva, passaram a
coxilha, estacionaram embaixo dos dois pés de cinamomos, bem na
frente da casinha branca. Desceram, e o Moreira gritou:
“ -
Júlio!”
Avançaram
em direção a porta.
E o
Moreira gritou de novo:
“ -
Júlio! Júlio! Abre a bosta dessa porta, Júlio!
A porta
continuou fechada. O Fonseca deu um empurrão com o ombro e as duas
folhas se abriram.
Entraram
com os 44 em punho, e de imediato, na cozinha, deu-se um estampido.
Lá
fora, a chuva batia forte e o sol continuava escondido atrás das
nuvens negras, que anunciavam uma longa e assustadora escuridão.
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