quinta-feira, 31 de outubro de 2013

ANOS DE CHUMBO


Domingo. Início dos anos 70. Tarde chuvosa, fria e escura de um inverno rigoroso. Próximo da capital, o Vilson e o Nenê pararam o carro na frente de um armazém, na beira de uma estrada deserta de chão batido. No balcão de tábua rústica pediram dois aperitivos para esquentar o corpo.
Nem olharam para os lados, quando o Moreira vestindo uma gabardine e terno pretos, perguntou:
“ - De onde vocês estão vindo?”
“ - Da casa dos meus pais.”
“ - Moram aqui perto?”
“ - Logo ali, depois da curva. Atrás daquela coxilha, numa casinha branca, com dois cinamomos na frente.”
“ - São irmãos?”
“ - Não. O Nenê é meu colega.”
“ - Trabalham onde?”
“ - No porto.”
“ - Ah, no porto?!”
“ - Sim no porto!”
“ - Estivadores?”
“ - Não no escritório.”
Foi quando o Fonseca, sujeito forte e mal encarado, também vestindo terno, impermeável e chapéu pretos, enfiou entre os dedos da mão direita uma soqueira de ferro cromado, se aproximou dos dois e disse:
“ - No sindicato?”
“ - Mais ou menos”, respondeu o Nenê.
“ - Mais ou menos?! Como, mais ou menos?! É no sindicato ou não é?”
“ - Sim. Somos escriturários. Datilografamos o movimento do pessoal.”
“ - São do partidão?”
“ - Não. Não! Somos apenas funcionários.”
“ - Mas lá, todos são do partidão!”
“ - Nós não. Somos datilógrafos.”
“ - Não. Não! Lá no sindicato só trabalham os camaradas do partidão!” Falou grosso o Fonseca.
“ - E o Júlio onde anda?” Perguntou o Moreira, chegando mais perto do Vilson e do Nenê.
“ - Júlio? Que Júlio?” Responderam os dois ao mesmo tempo. - “ Não conhecemos nenhum Júlio.”
“ - Fecha as portas e as janelas do armazém”, ordenou o Moreira para o Samuel, dono do estabelecimento.
O Moreira e o Fonseca retiraram os chapéus, os sobretudos, os paletós, arregaçaram as mangas das camisas brancas, encostaram os olhos nos olhos do Vilson e do Nenê:
“ - Quer dizer que não conhecem o Júlio? Pensam que nós somos otários, seus comunistas de merda?”
Começou uma sessão de pancadaria com cassetes, socos e pontapés por mais de 30 minutos. Depois ficaram o Vilson e o Nenê deitados, encolhidos no chão, destroçados, sobre uma imensidão de sangue.
O Moreira sacou do 44, e o Fonseca também, depois de arrancar a soqueira da mão.
“ - E o Júlio, porra? Onde está o Júlio? Fala, comunista desgraçado!” Forçou com cara e alma de bandido, o Moreira.
“ - Não sei. Não sabemos! Não conhecemos nenhum Júlio! Nunca ouvi falar.” Respondeu o Vilson gemendo baixinho, com o rosto deformado; já sem os dentes da frente, assoprando uma gosma avermelhada.
Dois tiros. Em seguida, mais dois disparos completaram o serviço nas cabeças do Vilson e do Nenê.
O Moreira olhou para o Samuel e disse: “ - Coloca os corpos no automóvel deles, com muita gasolina e atira o carro no barranco de sempre. E depois lava esse assoalho e não deixa um fio de sangue. E se te perguntarem alguma coisa, tu não viu nada. Tu nunca ouviu nem viu nada! E qualquer movimento estranho, nos comunica. Continua nos mantendo informados. Entendeu?
“ - Claro. Sim senhor!”, respondeu subserviente o Samuel.
Entraram na camionete Veraneio, que estava escondida nos fundos do armazém do Samuel, seguiram pela estrada de chão, fizeram a curva, passaram a coxilha, estacionaram embaixo dos dois pés de cinamomos, bem na frente da casinha branca. Desceram, e o Moreira gritou:
“ - Júlio!”
Avançaram em direção a porta.
E o Moreira gritou de novo:
“ - Júlio! Júlio! Abre a bosta dessa porta, Júlio!
A porta continuou fechada. O Fonseca deu um empurrão com o ombro e as duas folhas se abriram.
Entraram com os 44 em punho, e de imediato, na cozinha, deu-se um estampido.
Lá fora, a chuva batia forte e o sol continuava escondido atrás das nuvens negras, que anunciavam uma longa e assustadora escuridão.

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