quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A LANCHA VERMELHA

Aquilo que desconhecemos não nos faz falta. Se nos passa despercebido é como se não existisse. Inexistindo, ignoramos; então, não precisamos. Quando o nosso campo de visão é pequeno, este é o tamanho do universo, e os nossos desejos são saciados com o que contém o mundo que nos rodeia. O restante fica por conta dos nossos sonhos, da imaginação. 

Quando eu era guri lá na fazenda do meu avô, os brinquedos, a gente não ganhava. Tínhamos que inventá-los. Brinquedos comprados em lojas, com esses, a gurizada não brincava. O jeito era, de ossos de animais fazer tropa de gado, nadar nos rios, açudes e lagoas, pescar, andar a cavalo e ouvir causos de assombração. E não me lembro de ter sido infeliz. 

Eu tinha 10 anos quando viemos para a capital. Era preciso deixar a escola rural e continuar estudando. Na frente da minha rua existia (ainda existe) um grande parque e dentro dele um lago, onde as pessoas se divertiam nos pedalinhos. 

Um dia passeando na sua margem enxerguei naufragada no fundo barrento, uma pequena lancha de lata, colorida de vermelho. Quase não acreditei no que estava vendo. Entrei na água, mergulhei com roupa e tudo, e trouxe-a entre as mãos. Era um lindo brinquedo; novinho ainda, recém ali deixado. Uma exata miniatura daquelas que existiam de verdade; que eu nem sabia que existia brinquedo assim no mundo. 

Sabe, sobre a emoção de ver uma estrela no céu, brilhando só para ti? Foi o que significou aquele barquinho de lata para mim. Iluminou a minha alma, esquentou o meu coração de menino ainda desacostumado com tanta novidade. 

Agarrado na lanchinha corri que nem um louco para casa. Lavei, sequei, acariciei o meu tesouro, a minha preciosidade que eu havia buscado no fundo das águas do lago. Aquele barquinho, além de ser uma descoberta, trouxe embarcado nele, o sabor da conquista, da aventura; da sorte em possuí-lo. Sequer brincava com ele, com medo de estragá-lo. Só apreciava a minha lancha de lata vermelha. Seria minha para sempre, pensei. Precisava durar aquela surpresa. 

Depois ela se perdeu nas mudanças desta vida. Mas foi o primeiro brinquedo; brinquedo mesmo, que eu tive, que não havia sido feito pelas minhas mãos. 

Devia estar ali me esperando. Decerto, um outro menino tão acostumado com esses brinquedos comprados, que devia ter dezenas deles, pensou: “ - vou deixar este barquinho aqui no fundo do lago, para aquele outro guri que está chegando do campo, e que nunca teve um nem parecido com este. Vou dar de presente para esse menino que não conheço, este divertimento que ele tanto necessita!” 

Assim foi, que recebi daquele menino desconhecido, por via indireta, quem sabe, o mais valioso presente da minha infância. 

Mais adiante ganhei uma bola de futebol. Que alegria me deu aquela bola. Até dormia agarrado com ela, bem assim como depois de adultos nos seguramos nos amores da gente. Depois veio uma bicicleta que fez a liberdade ser minha companheira. Ainda chegaram outros adequados à idade que eu tinha. E vieram livros, muitos livros onde descobri outros mundos que também não imaginava que existissem. 

Mas aquele barquinho de lata vermelho, com motorzinho movido à pilha, mais do que todos os outros, até hoje bate forte na minha lembrança, navegando bonito na minha memória. 

E quero ter a certeza que ele não estava ali por acaso. Prefiro que seja assim: que um menino ali deixou-o para mim. Sabendo que eu estava chegando de um universo restrito, esqueceu o barquinho de propósito, no fundo d'água, para eu ir lá no fundo buscá-lo; brinquedo tão querido! 

Hoje, sinto saudades dessas emoções simples, puras. Os sonhos atuais ficaram muito complicados. O tempo endureceu a caminhada. Até me aconteceu, neste instante, agora mesmo, já menino velho, de me surpreender precisando brincar um pouco. De ter sido aquele barquinho que, outra vez, se mexeu dentro do meu peito. 

Obrigado, menino que não conheci, que agora deve ser um homem e um pai feliz, que ainda deve manter o generoso hábito, ensinando os seus filhos, a deixarem, distraidamente, barquinhos mergulhados nas águas dos parques, para que outros, assim como eu, possam ter a alegria e a felicidade de encontrá-los. 

Gracias, viejo!

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