segunda-feira, 3 de março de 2014

REJEITADA

Amorelina, criada solta pelos campos. Negra parideira de filhos vindos de pais sem nome, dava de presente as crias para quem quisesse. Mais de meia dúzia foram distribuídos nas estâncias da região. E nunca mais os procurava. Eram coisas que não eram mais dela. Sequer sentia saudade pela separação. Parecia até que não eram filhos nascidos de gente. Um negócio frio sem sentimento.

Os machinhos cresciam na volta das casas cumprindo ordens para se acostumar logo com o freio, fazendo serviços dos seus tamanhos. E as femeazinhas tratavam de varrer terreiro e buscar os pedidos da patroa. Depois de grandes se tornavam escravos, de uma escravidão que no papel não mais existia.

Mas tinha uma filha dela, a mais velha, mestiça de cara melada e cabelo duro meio arruivado, que esta ninguém queria. A Amorelina enaltecia as virtudes da crioulinha, diminuía os defeitos da guria e ninguém dava ouvidos para aquela apregoação, porque mancava forte de uma perna, ruim de serviço que era a coitadinha. Foi crescendo emprestada a mulatinha. Ficava uns dias lavando louça na casa de um, outra semana na fazenda de outro, em troca de um prato de comida e um canto para se deitar. Mas sempre de favor, sem compromisso. E desse jeito iam levando aquela rejeição.

Um dia deu na cabeça da Amorelina chegar para o Fidélis, um fazendeiro já veterano, que muito se aproveitou nas suas carnes, e falou decidida, em tom de ameaça: “ – não sei quem é o pai dos outros meus filhos. Mas a mulatinha renga é filha do senhor, e de mais ninguém. Fica com ela senão eu bato com a língua nos dentes!”

Pois não é que a criaturinha era a cara do Fidélis. Quanto mais crescia, mais parecida ficava. Era o comentário na redondeza.

“ – Deixa ela, então, por aqui. Fica sossegada, que eu vou dar um jeito nessa situação! – Respondeu o fazendeiro.

Deram falta da miúda, mas como coisa sem valor ninguém procura, esqueceram o extravio.

Menos de uma semana depois começou um cheiro de carniça que vinha do mato perto das casas.

Num galho de aroeira, olharam para o alto, e viram o corpo da negrinha pendurado pelo pescoço.

Daí explicaram o bando de urubus que há dias voava baixo rente a copa das árvores.

Quando a Amorelina soube do enforcamento, dizem que, sem mover um único músculo da face, só olhou para cima, na direção de uma pequena nuvem andarilha que se escapava para as bandas do horizonte, e disse: “ – melhor assim!”

Nenhum comentário:

Postar um comentário