sábado, 8 de março de 2014

GINETEANDO JACARÉ

O fato aconteceu na região da fronteira; no Bororé, na época, segundo distrito de Itaqui. Por lá vivia o Ciro Tertuliano da Costa, gaudério criado na lida de campo, exímio domador de mula. Não havia potro xucro que não se amansasse debaixo do seu comando. Guasca destemido, valente uma barbaridade, que em dia de marcação se botava a agarrar touro à unha só para mostrar toda sua qualidade. Índio acostumado com cheiro do suor de sovaco de china e respeitado no manejo do ferro branco. Bom de copo que só não engolia desaforo; dava um olho por um entrevero. Por conta da grande habilidade com a adaga, por desavenças nos puteiros, já havia despachado dois ou três para o mundo dos defuntos; que nesses duelos sempre vence o melhor ou o menos embriagado.

Pois sucedeu que no meio de uma tarde de domingo do mês de maio, flor de primavera, voltava o Ciro do bolicho do Pedro Gringo, onde rolava carteado de truco e jogo de tava. Foi quando avistou no capinzal, na beira do açude, um jacaré, que dormia embaixo do sol. Era um bicho com coisa de dois metros de comprimento, daqueles bem nutridos de-papo-amarelo. Já meio levantado pelo efeito de quase uma garrafa de ‘3 fazendas’, velha cachaça companheira, pilchado de bota, espora e bombacha e camisa arremangada nas juntas dos cotovelos e o inseparável lenço chimango, olhou mais de perto o animal e não pensou duas vezes.

Apeou do Zaino, foi se chegando macio por trás de umas moitas de alecrim e de umas macegas de carqueja e saltou, caindo sentado sobre o lombo do jacaré. De pronto, com a mão direita que era uma garra poderosa segurou forte na goela do animal, que assustado se mandou para dentro d’água. Se chacoalhava atirando o corpo para os lados, se retorcia com agilidade e vigor. E o Ciro acavalado, com o chapéu quebrado na testa continuava firme com as pernas se fechando em arco; as esporas tramadas uma na outra por baixo da barriga de escamas brancas do jacaré. O bicho feito uma fera se foi para a parte mais funda do açude, fazendo de tudo para se livrar daquele peso. Mergulhava e permanecia uma eternidade lá por baixo, voltava à tona quando o Ciro respirava. De volta na superfície fazia giros completos com o corpo, verdadeiras acrobacias áreas. Dava violentos laçaços com o rabo, sacudia desesperado com a cabeça, abria a bocarra enfurecido, mostrando a ameaçadora dentadura assassina. E o Ciro gineteando com maestria, gritando para o jacaré continuar com aqueles bruscos movimentos. Continuava com as pernas trançadas em volta e a mão direita ainda bem presa onde devia ser a garganta do animal. O Zaino relinchava impaciente, o cusco latia nervoso nadando ali por perto, o gado mais arisco se mandou a campo fora, os quero-queros revoavam em bando numa gritaria desenfreada. Quem tinha pata disparava, quem tinha asa voava. Deu uma desordem no lugar. Uma tremenda confusão, daquelas, que igual nunca se teve notícia.

O tal do jacaré corcoveava com valentia; caborteiro, velhacava por demais, pior que cavalo aporreado. Quando voltava do fundo das águas parecia que ia voar. Se sacudia com toda a energia da sua musculatura, para em seguida mergulhar outra vez. O Ciro já sem chapéu estava cada vez mais decidido a não perder aquela luta. Não era homem com o feitio de comprar briga para perder.

Já durava mais de meia hora aquela peleia. Por fim, o jacaré foi esmorecendo, perdendo as forças, se entregando, se entregando. A cauda ficou estendida, sem movimento. A bocarra não mais mostrava perigo. Finalmente, cansado, veio para a superfície. Se entregou ao domínio do seu domador.

O Ciro também exausto, retirou a guaiaca da cintura, passou ao redor do pescoço do bicho e arrastou aquele corpo sem reação até uma das pontas da taipa do açude. Sentou ao lado do jacaré que respirava ofegante, recuperando as energias perdidas. Depois abriu os olhos e não tentou escapar. Ficou imóvel ao lado do homem que lhe dominou, bem assim como fica um cão junto ao seu dono, ou uma mulher apaixonada.

Quando refeito, o Ciro levantou da grama e gritou: “ – vem, bicho!” E o bicho veio. Percorreram lado a lado, com o Zaino e o cusco com cruza de ovelheiro que vinham atrás no passito, até a outra extremidade da taipa do açude. Então subiram um pequeno cerro e chegaram no rancho. E gostou de ver, o jacaré, uma pequena lagoa no lado da moradia que escolheu para fazer residência.

Pois não é que o animal deu para conviver ali pelo terreiro, misturado com as galinhas, patos, gansos e marrecos, cachorros e gatos, mais dois cordeiros guachos, um graxaim, um urubu e um zorrilho de estimação. Era o “Bicho”, que era como o jacaré atendia, o melhor amigo do Ciro. Nas andanças pelos arredores da habitação, lá estava o animal, acompanhando atento aos passos do seu dono; e além do mais, cuidava de toda a criação. E ai de que um estranho tentasse se achegar. Bastava mostrar os dentes, sacudir o rabo e pronto, estava desfeita a aproximação. Até que um dia, o bicho morreu de velho. Foi a primeira e última vez que o Ciro chorou naquela vida feita só para os homens construídos com corpo de ferro e recheados com alma de aço.

E o Ciro sempre diz, agora já veterano: “ – difícil mesmo de domar é o danado do bicho homem. Raça muito dura dos queixos. No mais, não há fera que não se entregue!”

Então, senta num cepo na sombra de um cinamomo no oitão do rancho, enrola um palheiro, aprecia um bando de marrecas piadeiras, e outro de colhereiros e outro de maçaricos que revoam rumo ao açude, e completa orgulhoso, com um sorriso de boca inteira: ” – que tudo que é vivo, a gente doma nesta vida; inclusive china de zona.” E dá um grito em direção à cozinha: “ – mas quanta embromação, mulher! É pra hoje ou pra amanhã este chimarrão?!”

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