sábado, 15 de março de 2014

A DISRITMIA

Normal, normal, isso a Edilaine nunca foi. Desde pequena procurava ficar afastada das pessoas, brincando com os dedos dos pés e falando sozinha. Seus pais, gente simples, diziam que ela tinha era disritmia cerebral, que nem sabiam o que aquilo significava. Ouviram certa vez alguém falar, acharam as palavras bonitas, e afirmavam com solenidade sempre que alguém mostrava um comportamento diferente: é disritmia.

A dona Firoca quando explicava o suposto problema da filha fazia pose de sabichona. Espichava o pescoço, arregalava os olhos, dilatava as narinas, levantava a cabeça, meio que enrugava os lábios e dizia com autoridade: “ - a Edilaine tem é disritmia cerebral!” E acrescentava com certa pompa: “ – só que essa que ela pegou é daquele tipo que só ataca no cérebro!” Falava e ficava encantada com o que havia dito. E o seu Lindor sentado ao seu lado, afirmava que sim, bem sério com a cabeça, demonstrando uma ponta de orgulho por a filha ser portadora de uma doença com nome tão bonito, tanto de pronunciar, como de ouvir. E não cansavam de repetir: disritmia! Disritmia! Ora, vejam só, a nossa filha com disritmia!

Moravam numa chacrinha, longe da cidade, e era muito bonita a Edilaine depois que cresceu. Mas sempre solitária; vivia sentada no chão com o queixo apoiado nos joelhos brincando com os dedos dos pés. Aliás, cada dedo tinha um nome e eram todos os seus únicos amiguinhos. E conversava durante os dias inteiros com eles.

Um dia discutiu feio com o dedão do pé direito, que ela chamava de Carlito, que era o seu confidente. Discutiu aos gritos, brigou; ficou transtornada com aquela desavença. Correu até o galpão, pegou um facão e cortou fora o Carlito, melhor, o dedão do pé direito. E assim, sucessivamente foi arrumando briga com todos os outros dedos, que se transformaram em inimigos ferozes após a morte do Carlito. Antes de decepá-los, xingava com palavrões aquele próximo que iria ser trucidado. E no fim da discussão dizia para a vítima: “ - te odeio! Por isso vai morrer!” Depois enrolava o dedinho morto num pedaço de pano, fazia velório com encomendação do corpo, melhor, do dedo, para a seguir realizar o enterro propriamente dito, com muito choro e gemidos da parte dela.

A Edilaine fez até um cemiteriozinho particular muito bonito de se ver. Cercou com pedras retiradas do rio um quadradinho de terra, plantou na volta flores colhidas no campo, e ali jaziam todos os seus antigos amiguinhos, melhor, seus dedinhos. Todos os dez. Do dedão ao minguinho de ambos os pés. Ficou solitária, sem amiguinhos para conversar.

Com o fim dos seus parceiros baixou sobre a Edilaine uma grande tristeza. Passou a andar chorosa, desencantada com a vida. Sentada no chão, olhava os pés sem dedos, e via-se desamparada sem ter com quem desabafar. Um dia chegou para a dona Firoca e disse: “ – mãe, posso ficar amiga dos teus dedinhos?”

A dona Firoca entrou assustada para dentro de casa, e contou para o seu Lindor: “ – ela agora vai cortar todos os dedos dos meus pés!”

O seu Lindor falou com muita convicção: “ Deixa! Afinal ninguém morre pela falta de uns dedinhos. O que conta é a felicidade da guria!”

Logo o cemiteriozinho ficou pequeno. Teve que aumentá-lo, para poder receber mais os dez dedinhos da dona Firoca.

Após sepultar o último dedo da mãe, a Edilaine chegou para o seu Lindor: “ – pai, posso ficar amiga dos teus dedinhos?”

“ – Claro, filha. São todos teus. Mas antes fica amiguinha dos dedinhos das tuas mãos!” Ela ficou.

Certa manhã chegou de visita um irmão do seu Lindor que lidava como peão numa fazenda da região. E ao ver aqueles aleijumes na Edilaine e na dona Firoca, perguntou: “ mas o que foi que aconteceu com os dedos dessas duas?”

O seu Lindor olhou sério para o irmão, tossiu forte para limpar um pigarro na garganta, se ajeitou no banco, organizou as letras na boca e disse, bem devagarinho, quase sem abrir os dentes, com cuidado para não tropeçar nas palavras: “ – disritmia, mano velho! Disritmia cerebral!” Fez uma pausa, trocou o ar dos pulmões e completou: “ – eta doencinha braba, esta! Ataca só o cérebro e depois nos dedos das pessoas. Mas fica tranquilo, que pelo jeito, este mal gosta mesmo é de mulher!”

Nenhum comentário:

Postar um comentário