sábado, 15 de março de 2014

DUAS LÁGRIMAS

Nada havia mudado na margem de cá do rio. Menos o Joca Linhares que estava cincoenta anos mais velho. Sentado na grande pedra moura deixou seus pensamentos correrem junto com a suave correnteza. Aquelas águas eram como se fossem os primeiros capítulos do livro da sua vida. Afinal, fora ali que plantara os melhores sonhos da sua existência. Naquele lugar tecera com fios de ouro os dias do seu futuro, quando era apenas um menino. Ali, ainda rapazinho, concretava seus ideais.

Bem antes de atingir a maioridade saiu da fazenda. Veio para a capital, depois para as principais cidades do mundo. Aprendeu a conhecer as pessoas e teve amores. Sorriu e chorou. Venceu e perdeu. Venceu e perdeu tantas vezes que retirou com as lições das perdas, a suficiente experiência para logo vencer outra vez. Agora, já além dos sessenta anos voltara para fechar o círculo: morrer onde havia nascido.

O dia estava quente e o céu azul. As árvores com seus vários tons de verde cobriam os dois lados do rio. As borboletas multicoloridas enfeitavam o ar. O silêncio só era quebrado pela cantoria das grandes aves e dos passarinhos. E os lambaris pulavam ágeis para fora d’água para apanhar algum inseto. Um martim pescador se atirou certeiro de um galho de Sarandi, para mergulhar e trazer vitorioso, atravessado no bico, um peixinho qualquer. As saracuras corriam ariscas pelo mato. As caturritas e os periquitos e os papagaios em bando gritavam numa algazarra enlouquecida. Os beija-flores zuniam suas asinhas atrás de uma flor. O João de barro, o mais livre dos construtores, firme no chão, batia as asas com energia e cantava forte o seu canto. A pedra moura era a mesma. A mesma da sua infância. Tudo estava igual, bem do jeito que o Joca Linhares havia deixado há cinco décadas passadas. A natureza ainda estava intocada. Aquele recanto preservado, lembrava um retalho do paraíso.

Ainda sentado na grande pedra moura se reduziu em pensamentos: quanto da vida havia retirado nesse meio século, que passou tão rápido como a duração de um fósforo aceso. Conforme ia pensando, fazia que sim com a cabeça, aprovando o que havia vivido. Lembrou de todos os amores, dos negócios, das viagens, das pessoas; dos amigos, das mulheres, dos prazeres. Também recordou das dores, das vitórias e das derrotas.

Caía a tarde. O sol já se escondia por trás de um majestoso Angico que se destacava na mata, quando, de repente, sentiu uma fisgada na alma, uma ponta de dor no coração, uma frustração, uma saudade. Um vazio azedo lhe estufou por dentro.

De que lhe adiantava, pensou, ter vivido o que viveu, ter conquistado o que conquistou, se com ele não mais estava o seu grande amor. Se a Ana Maria desaparecera para sempre, voando nos braços de uma aventura que apareceu. De que lhe adiantava estar ali, naquele lugar sagrado da sua infância, se todas as pessoas daquela época estavam longe ou já haviam morrido. Ali não havia mais ninguém. E na vida o que importa são as pessoas. A paisagem, embora bela, é apenas um complemento; nada além de um cenário para a vida acontecer.

O Joca Linhares olhou um canto do céu tomado por uma revoada de garças muito brancas, que começavam a retornar para pernoitarem no seu eterno dormitório, e perguntou para si mesmo: “ – o que faria uma dessas garças se não tivesse as outras ao seu lado? Sou uma garça solitária!!”

Sentado na beira da grande pedra moura, com os pés submersos revistou toda a sua trajetória, assim como quem assiste um filme. E concluiu: “ – agora, de nada me vale a vida sem a Ana Maria, e sem minha gente por perto!”

Baixou a cabeça que viu refletida no espelho d’água. Seus olhos se afogaram. Duas lágrimas salgaram o rio.



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