sexta-feira, 5 de julho de 2013

PONTOS DE VISTA

Dois amigos escritores, o Tom e o Vinícius, se encontraram pela terceira vez num boteco para finalizar um texto sob encomenda, que estavam escrevendo em parceria. 

Só faltava para concluir a obra, escolher entre duas palavras, aquela que desse mais ritmo e sentido para a frase final. 

Empacaram entre aquelas malditas palavras e nada de conseguirem decidir por uma delas. Já haviam discutido nos encontros anteriores, quase brigaram, até que resolveram tentar naquela noite, mais uma vez. 

“ - Afinal, vai ficar complexo de culpa ou sentimento de culpa? É “complexo” ou “sentimento”? Qual delas se encaixa melhor? “Quis saber o Vinícius.” 

“ - Que merda. É tudo quase a mesma coisa. Ninguém vai notar diferença. Os leitores que irão ler este conto não são tão exigentes assim. Vai ser publicado numa dessas revistas de celebridades, e você conhece esse público. Dá um jeito, emenda, e coloca logo as duas juntas.” - Respondeu o Tom. 

“ Não! tá louco, é? As duas não podem ficar juntas neste final. Cada uma delas leva a frase para entendimentos diferentes. Ou é “complexo” ou é “sentimento.” 

Então tá! Vamos escolher logo uma delas! Põe aí “complexo”, complexo de culpa.” 

“ Não gostei! Não gosto desta palavra, Tom! É muito pesada. Prefiro sentimento. É mais leve, mais romântica! Escuta só que bonito fica: ... Sentimento de culpa! “sentimento”; quando a gente fala esta palavra “sentimento”, os lábios se unem rápidos, e depois se soltam um do outro tão suavemente, que até parecem imitar um beijo!” 

“ Pode parar. Essa do beijo foi para matar! “Complexo” é mais forte, mais sonora. É até menos vulgar, porque a palavra “sentimento” todo mundo fala, sem nem saber o que significa. É um tal de “sentimento”pra lá, “sentimento” pra cá. Tudo é sentimento. Agora a palavra “complexo”, é como colocar uma gravata colorida na frase. Ilumina qualquer frasezinha boba! Sente só: complexo de culpa, “complexo”! Que palavra mais linda! 

“ - Credo! Essa de gravata colorida na frase me quebrou ao meio.“ 

“ - Queres saber de uma coisa? Chega dessa ladainha! Não aguento mais. É a terceira vez que nos reunimos, fora os telefonemas e não conseguimos decidir. Que merda essas duas palavras. Vai, Vinícius, coloca logo aí, complexo de culpa, e acabou!” 

“ - Também não é bem assim, Tom. Autoritarismo, não! Calma Tom. Se a gente coloca a palavra errada, ela vai ficar ali para sempre. O que a crítica vai dizer? E depois, sempre tem uma meia dúzia de cães ferozes patrulhando tudo que a gente escreve; atrás de um erro qualquer. 

“ - Não estou nem aí para essa gente. Já falei Vinícius, dá um jeito, resolva! Aumenta a frase, sei lá. Quem sabe damos outro final, então, com outras palavras?” 

“ - Agora não dá mais. Fazendo outro final, teríamos que mudar todo o enredo, trocar o local da ação, os personagens. E o conflito entre eles está ótimo. Refazer todo o texto é uma loucura. Tô fora! A frase final tem que ser curta, objetiva, como um tiro no coração, e não temos outra melhor do que, “sentimento de culpa.” 

“ - Não repita isso pelo amor de Deus. Vou explodir com toda essa indecisão. 

“ - É o seguinte. Pensei melhor e decidi. Vou inventar outro final, mantendo a mesma história. Sou bom nisso. Deixe comigo!” 

“ - Não mesmo! Não tem outro final. Pense na sacada genial que foi escrevermos este final. E agora desistirmos dele, por conta dessas palavras: “complexo ou sentimento.” É “complexo”, ou as duas e pronto. Eu não falo mais. Tô ficando maluco com essa história. 

“ - Tom, é uma droga quando se atravessa diante do escritor esta busca interminável pela melhor frase, pela palavra exata. Já teve gente que sofreu uma espécie de ataque epilético, quando atravessou dia e noite atrás da palavra certa que não encontrava. Eu sinceramente, largaria de mão este final e inventaria outro, agora, já, já; queres ver? 

“ - Não. Não, não! Vamos fazer assim, Vinícius: vamos deixar este texto descansar mais uma vez, e daqui a uma semana a gente volta sobre ele novamente. 

“ - Negócio fechado. Guarde estas folhas sujas de cinzas de cigarro e manchadas de vinho tinto, e vamos beber, até porque, já está ficando tarde. E pode ser que aquelas duas loiras sacanas apareçam. Elas que quando chegam, espalham ouro nessas noites desgraçadas! 

“ - Vamos beber, mas vamos combinar uma coisa: hoje não se fala mais sobre o final do texto; se é “sentimento” ou “complexo de culpa!” 

“ - Claro!” 

- Só mais uma coisa. Quando a gente fica assim indeciso, ficamos parecendo dois asnos teimosos. Tô me sentindo um idiota. Além do mais, escrever em dupla sempre trás algum tipo de desentendimento! 

“ - Pronto. Hoje não tocaremos mais no assunto!” 

“ - Tá bem, meu velho. Aperta a mão aqui, vai!” 

“ - Garçom! Mais duas doses com bastante gelo em cada copo!” 

“ - Que coisa boa, não pensar em nada!” 

“ - Garçom! Mais duas doses em cada copo, com bastante gelo!” 

“ - Que alívio, conseguir ficar um tempo sem pensar em história, personagens, enredo, conflito e final! Que delícia!” 

“ - Garçom! Mais...” 

“ - Puta que pariu, Vinícius, já está quase amanhecendo e aquelas duas loiras safadas ainda não apareceram. Vai ver que já se arranjaram bem por aí.” 

“ - Chama o garçom, pede umas doses de saideira e vamos embora. Mas antes, me diga Tom, o que vamos colocar no final do nosso conto: “complexo” ou “sentimento” de culpa?” 

“ - Vamos para casa. Outro dia a gente resolve. Até porque, escrever bêbado, nunca saí nada que preste.” - Falou o Tom, já em pé, pagando a conta. 

“ - Bobagem. Aí é que eu fico bom. Eu e o Bukowiski.” - Disse o Vinícius. 

E lá no céu, a noite cansada também se preparava para ir embora, bem apressada, porque o dia já vinha chegando novinho bem disposto, pronto para cumprir o seu turno de trabalho.

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