quarta-feira, 5 de setembro de 2012

PÃO ASSADO E BISCOITOS TOSTADINHOS

A Verônica era do lar. Tudo o que fazia era estritamente dentro de casa, e no pátio. Ali passava os dias, os meses, os anos, a vida, costurando, chuleando, caseando, cerzindo, remendando, fazendo bainhas, pespontos, pregando botão, lavando e passando as roupas surradas e as cuecas fedorentas do Alfredão. Também fazia comida, arrumava a mesa, servia, recolhia e lavava a louça. E esfregava ajoelhada o assoalho da casa, e varria o cisco do terreiro de chão batido. E assava pães, e uns biscoitos, e umas roscas bem tostadinhas no forno do fogão. Depois servia o jantar e jantava sozinha, e deixava um prato na mesa esperando o Alfredão. Depois tomava um banho, passava uma alfazema no corpo, deitava e via novela, pra depois ser acordada pra transar sem prazer com o sujeito.

O Alfredão era da rua. Vivia de biscate, jogo de baralho, de dadinhos e bebida. Em casa só peidava, arrotava, tossia, vomitava, cuspia e mijava fora do vaso. E mandava a Verônica, aos gritos, trazer mais uma cerveja da geladeira. De dia olhava o sol e de noite, quando estava em casa, não tirava os olhos do céu, contando as estrelas, encantado com a lua e bebendo as cervejas que a Verônica trazia. Depois jantava a comida fria, tirava a roupa, e sem banho, acordava a Verônica, pra, bem bêbado, outra vez, transar forçado com a criatura.

Com mais de dez anos naquela vida, a Verônica pensava bem forte que não aguentava mais aquela situação. Estava saturada de varrer o pátio, limpar a casa, transar com o Alfredão e fazer pães e biscoitos bem tostadinhos no forninho do fogão. Não queria mais saber de agulha e linha pela frente e dedal enfiado no dedo. Pão e biscoito tostadinho não queria nem ouvir falar. Tomou nojo daquelas obrigações enfadonhas. - Meu Deus, que casamento é esse? Se perguntava. - Isso não é vida, afirmava em pensamento. Tinha porque tinha que sair daquela situação, daquela enrascada. Não aceitava mais transar com o Alfredão bêbado. Bem verdade que ele também já andava entediado, não sentia mais vontade para transar com uma mulher que só cuidava da casa, que só costurava, que só varria o pátio, que só fazia comida, que só lhe trazia cerveja, que só lavava e consertava as suas roupas, e que só fazia pão e biscoitos bem tostadinhos. Saturados, é que estavam um com o outro. Mas iam levando, até que aparecesse coisa melhor para fazer.

Vai que uma noite, depois de um baita porre do Alfredão, a Verônica tomou coragem, se arrumou toda, pegou um ônibus e foi num bailão, convidada pela Celeste, uma vizinha solteirona. Até que ficou bem arrumadinha, a Verônica, com aquele vestidinho de um tecido macio, fresquinho, estampado com uma mistura de flores vermelhas, azuis e amarelas, que há anos estava sem uso, enfiado numa gaveta, e um colarzinho de pedrinhas de fantasia. E um degote profundo que mostrava as tetas morenas bem feitas ainda, firmes, com os mamilos espetados, atrevidos, tomados de uma entusiasmada animação; lambuzada de alfazema, uma sandália preta bem limpinha e duas tranças pretas que se sacudiam enquanto dançava faceira com o Portela. Aí tocou uma música lenta, e o Portela chamou o corpo da Verônica pra bem junto do seu, com os seus braços de trabalhador, e ficaram dançando no meio dos outros pares, bem agarrados, quase parados; um sentindo o corpo latejante do outro, vibrando as carnes por necessidades há muito tempo não atendidas. Expulsando a solidão. Então, se encheram de juras, carinhos e entregas.

O Portela era um bom homem. Honesto e trabalhador. Parece que empreitava pequenas obras, e falou baixinho e quente no ouvido da Verônica uns galanteios e essas palavras bonitas de amor que qualquer mulher gosta e precisa ouvir, e que atinge em cheio, principalmente as feias e as carentes. Pronto. Não deu outra. Começaram a namorar ali mesmo, naquela hora, naquela noite. O Portela prometeu-lhe vida boa: empregada doméstica, passeios nos finais de semana, roupas novas e uns filhos, um casal; um menino e uma menininha pra alegrar a vida dos dois.

A Verônica foi em casa, de manhã cedo, logo depois do baile, colocou numa sacola meia dúzia de coisas de estimação, deixou um bilhete de despedida em cima da cama onde o Alfredão roncava como um porco, e se foi para a casa do Portela. Atravessaram a cidade e ela foi morar naquele sobradinho do solteirão. E como foi bom. Que tempos bons tiveram a Verônica e o Portela. Foi um tempo muito bom. Bom mesmo. Aliás, bom demais. Ainda mais se comparado com a vida que levava com o Alfredão, coisa que, a bem da verdade, não gostava nem de lembrar. Credo. Aquilo, nunca mais, pensava enquanto dormia agarrada no corpo musculoso do Portela.

Mas teve um dia; sempre tem um dia, um momento em que o bom cristal, aquele que estava aparentemente seguro e bem guardado, mas que por algum acontecimento inesperado, se parte. Ou se trinca. E perde o seu valor. Perde o seu sentido. A sua razão de ser. E nesse dia aconteceu, numa tardinha chuvosa e preguiçosa, quando o Portela falou para a Verônica: “ – sabe, nega, tô com uma saudade de comer pão e uns biscoitinhos caseiros bem tostadinhos, feitos no forno do fogão. A minha mãe fazia uns que eram uma delícia, e não sei porque, agora me deu uma vontade de comer aquelas delícias bem quentinhas. Tu faz pra nós, querida?”

Pronto. Trincou a taça de cristal. A Verônica fechou a cara, e deu sumiço no seu encantamento. Desiludida, pensou: “ – putz. Isso de novo não. Isso nunca mais. Agulha, dedal e linha até passa, mas pão e biscoitos tostadinhos assados no forninho do fogão, jamais. Isso é humilhação.

Foi lá dentro do quarto, arrumou as suas coisas numa mala e se foi embora, deixando o coitado do Portela sem entender o que tinha acontecido.

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