quinta-feira, 13 de setembro de 2012

DELÍRIO

Em uma das mortes que tive, subi para uma espécie de céu; o paraíso, ou desci para aquilo que fosse o inferno; a dúvida, ou andei para um purgatório, onde gemia. E por lá encontrei uma figura, um bichinho magro e comprido com feitio de gente, ou seria aquilo uma pessoinha estranha com cara e jeito de um animalzinho? Não sei. Pra falar a verdade, eu não tinha a mínima ideia onde estava, e quem me recebia. Acho que nem sabia quem eu era. 

O fato é que essa criatura ou invenção de um delírio era transparente. Tinha a pele tão fina que parecia um papel de seda, de maneira que eu podia ver as suas veias latejantes transportando sangue, linfa ou seiva. Não consegui identificar que líquido era aquele. Via os seus órgãos funcionando, pulsando, cumprindo as suas funções. Enxergava os movimentos peristálticos de suas entranhas se mexendo como cobras inquietas amontoadas no ninho. E avistei o interior do seu cérebro como se fosse um motor, um dínamo produzindo energia, que imaginei que poderia ser: calor e frio, alegria e tristeza, amor e ódio, abraços e vingança, vida e prazer. Ou morte. E tinha o interior da cabeça iluminado. 

Então pensei: será que esse trocinho é Deus? Será que aquele Deus que me ensinaram a imaginar era mentira? Que aquele velho gigantesco, barbudo, vingativo, temido, era na verdade, só isso: essa criaturinha indefinida, sem uma mínima expressão de autoridade, respeito e credibilidade cravada na sua fisionomia? Mas o diabo também tem cara de ruim, de vingativo. E a criaturinha era boa, mansa. Não era supremo, nem demoníaco. Era boa, simpática, simplesmente. Carinha boa era o que tinha a criaturinha. Mas aquela luz na cabeça, só ela possuía. 

Fui me aproximando, chegando bem pra perto daquela coisinha, já sem olhar para os seus intestinos; coração, rins, fígado, nervos e veias. Me fixei na transparência da cabeça que mostrava o seu cérebro elétrico todo iluminado. Pra alguma coisa importante deveria servir aquilo, julguei. 

Parei bem juntinho dele, me abaixei, e olhei bem fixo pra dentro daquela cabeça volumosa, onde cabia coisa de uns três quilos de massa encefálica, toda trançada com veias coloridas, e perguntei quem ele era, a quem servia e que serventia possuía. 

E a figura que não tinha boca, pelo menos assim como a nossa, só um desenho daquilo que seria uma boca, dois furos no lugar do nariz, uns olhos opacos, enormes, saltados, que não enxergavam, e sem orelhas, só dois canudinhos no lugar delas e, inesperadamente e sem me dar resposta, fez o cérebro brilhar bem forte e atirou uma espécie de raio azulado em cima do meu corpo, que me derrubou. 

Caí um tombo feio. E dormi não sei por quanto tempo. E quando acordei estava em casa novamente, deitado na minha cama. 

Foi quando sem saber se tinha sonhado, enlouquecido ou havia caído em delírio outra vez, pulei fora e fui tomar um café preto bem forte e quente, muito preocupado, afinal, andava delirando demais ultimamente, vendo coisas estranhas. 

Tentei pensar como os malucos pensam, numa tentativa de decifrar o ocorrido. Por mais doido que tentasse ficar não consegui resposta nenhuma. 

Tentei ser religioso e pensar como os crentes pensam pra obter uma resposta. Nada. 

Tentei ser inteligente e pensar como os inteligentes pensam. Piorou. 

Então vou ser um idiota e pensar como os idiotas pensam. Pior ainda. Vazio total. 

Pra resolver a questão tomei quase um litro de uísque no gargalo, pra ficar bêbado e pensar como os bêbados pensam. Só porcaria. 

E quando já estava pensando em telefonar para a Sílvia me internar num hospício ou qualquer coisa do gênero, já que pensava que estava completamente pirado, bate a campainha. Levanto cambaleando e abro a porta. 

Era a Sílvia, minha namorada. Entrou, bateu a porta, se encostou na parede, colocou horrorizada as duas mãos no rosto, arregalou os olhos e com um fiapo de voz que lhe sobrou, me perguntou: “ – o que houve contigo, Juquita? Tu estás transparente!” “ – Foi o bichinho”, respondi. “ – Que bichinho?” Insistiu. “- Esquece”, devolvi. 

Logo se acostumou um pouco com o que via e perplexa olhava todo o meu interior. Aconteceu com ela a mesma cena com a coisinha que me assombrou. 

Fechei os olhos e cochilei um pouco no sofá, e quando acordei, olhei para a Sílvia, e agora para outro espanto meu, aquela bonita mulher estava translúcida como uma vitrine, revestida de um papel de seda tão fino, que visitei com os meus olhos a parte de dentro do seu corpo e da sua cabeça. Cheguei, por breves instantes, a enxergar os seus pensamentos, que estavam sendo fabricados naquele instante, no interior do seu cérebro. 

Ela pegou na minha mão, me levou para o quarto, apagou a luz, e na escuridão nos deitamos, e sem a necessidade de tirarmos as roupas, fizemos amor, assim como se fôssemos duas lâmpadas acesas grudadas uma na outra. Foi o melhor amor que fiz em toda a minha vida. Nem antes, nem depois houve nada melhor. 

Quando terminamos virei para o lado e o quarto já não estava totalmente escuro. Uma luzinha gostosa, meio azulada, dava vida para o ambiente. Olhei para a frente com o canto do olho levantado, e lá estava a figurinha que eu já conhecia, em cima do criado-mudo, em pé, imóvel. Então abriu aquele desenho de boca, formou dois lábios bonitos e sorriu pra mim, com a cabeça acesa, parecendo um abajur. 

Me ajeitei melhor na cama com os olhos bem abertos, também sorrindo para a criaturinha, e me senti em paz, tranqüilo. Pareceu até que ficamos amigos. Que um gostava do outro. 

Cutuquei a Sílvia com o cotovelo e perguntei: 

“ – Tu viste? Tu estás vendo?” 

Ela grudada nas minhas costas, com o rosto mergulhado na minha nuca, retrucou: “ – vendo o quê? Ficaste doido, Juquita?” 

Me virei de frente para ela e não vi mais os seus intestinos, nem o seu cérebro. Estava de volta com aquela pele sedosa de pêssego maduro que eu sempre gostei tanto. 

Aí, perguntei pra ela: “ – como é que eu estou? “ – “ Transparente ainda, mas voltando ao normal.” Respondeu. 

A seguir escutei um barulho de persianas se abrindo, e vi, meio querendo não ver, a figurinha saindo, voando janela afora. 

“ – Putz. Que coisa doida tudo isso, não? Falei sem querer. 

Fizemos amor de novo, eu e a Sílvia. 

Nunca mais conseguimos fazer amor como naquela ocasião, quando ela estava transparente e iluminada como eu, e com o sujeitinho aquele ali por perto; acho que colocando luz nos corações da gente.

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