sábado, 22 de setembro de 2012

A INICIAÇÃO

Isso aconteceu numa noite muito escura. No céu sobreviviam acesas apenas meia dúzia de estrelas e o gancho inferior de uma lua que minguava lentamente, se aprontando pra morrer. Só umas lamparinas abastecidas com graxa animal iluminavam aquele local no meio de um campo deserto. E a luz trêmula das candeias fazia brilhar os corpos suados e untados de óleos das negras e dos negros que ali me esperavam com os rostos pintados de uma intensa tinta escarlate. Um negro enorme, forte como uma fera, com uma cicatriz que dividia a testa, o nariz, a boca e o queixo ao meio, me empurrou para o meio de todos eles. Então, eles se aproximaram e com umas tiras de couro me bateram até não poder mais. Caí no chão embarrado, quando comecei a ouvir a batida de tambores e eles vieram dançar na minha volta. Uma negra alta, jovem e bonita, com cara de braba me ergueu do chão e me fez dançar também. E me abraçou e me beijou e me deu a entender que era mulher do mais valente guerreiro daquela tribo, e se insinuava, passando a idéia que gostava de mim. Eu fiquei com medo mas não adiantou nada. Ela me segurava, me apertava contra o seu corpo e continuava me beijando, me lambendo, mostrando que me queria. Pelo menos assim compreendi, pelo jeito sensual que falava. Aí apareceu, o negro guerreiro, marido dela. Separou nós dois, passou a mão fazendo um afago no rosto da negra e me derrubou com um grande soco no queixo. E me encheu de pontapés por todo o corpo. Foi quando cessaram os tambores, e ele parou. Olhei para cima e vi aquele grupo de homens com o corpo reluzindo armados com lanças perigosas, e do meio deles, bem na minha frente, apareceu uma majestosa figura negra que deveria ser o chefe, com uma máscara de couro colorida que lhe tomava a metade do corpo, da altura da testa até a cintura, com os braços cheios de fitas e penas, e as pernas também. Parou diante de mim e determinou que me levantassem. Falou umas frases curtas e de forte efeito sonoro, que eu não entendi, e apontou para uma charneca. E para lá os seus súditos me levaram e me atiraram naquele banhado fedorento. Fiquei lá com o corpo submerso, só com a cabeça de fora por toda a noite, e também todo o outro dia, quando eles sumiram, todos. Eu fazia força pra sair e não podia. Quanto mais me mexia, mais me atolava. O barro exercia uma força centrípeta sobre o meu corpo, comprimindo e anulando o meu esforço físico. Anoiteceu novamente e eles voltaram. Uma multidão deles. Me retiraram daquele pântano imundo e pagajoso e pra comer me deram uma tigela de barro queimado com uma espécie de mingau, e eu todo embarrado com o corpo coberto com aquela lama preta, retinta. Me levaram para uma grande cabana coberta de capim e tocaram os tambores novamente e dançaram sob os olhares do chefe sentado no seu trono de palha. E saia uma fumaça com cheiro de carne assada de um lugar ali ao lado. Olhei e vi em cima duma espécie de grelha feita de paus, muitos pedaços assando. Pela distância achei que eram pernas, braços, costelas e lombo de gente de pele branca. Voltou novamente aquela negra bonita e séria, mulher do guerreiro, me agarrou forte com os braços, bem nua com o corpo brilhando de uma óleo de cheiro bom. Me beijou, tirou o meu calção e me fez deitar com ela numa esteira no meio de todos, que fizeram um círculo em volta de nós. Veio por cima de mim com as pernas abertas, predadora, me devorando, cheirando a cio recém chegado, e fiquei com vontade. Quando estávamos quase terminando ela deitou os seios fartos e bem-feitos sobre o meu peito, encostou a boca na minha e os seus enormes lábios engoliram a minha boca e a minha língua. Em seguida levantou-se, e eu também. O chefe se aproximou e com uma faca feita de osso fez um corte comprido e fundo que atravessou o meu peito na horizontal, depois ordenou que ficássemos frente a frente com os nossos corpos grudados um no outro e nos amarrou com um cipó enorme. Feitos esses procedimentos saíram, e assim, grudados, corpo com corpo, hálito no hálito, partes nas partes, passamos a noite inteira. Provocamos uma queda e deitamos novamente na esteira e ela me beijava, beijava e me beijava com aqueles lábios gigantes, molhados e quentes e me lambia e engolia a minha língua e assim, somente com o atrito possível das nossas carnes nos realizamos várias vezes, deliciosamente. Dessa maneira ficamos também o próximo dia todo. E eu com medo do marido dela, do guerreiro valente. Quando anoiteceu outra vez eles vieram todos, com o chefe caminhando na frente e tocaram os tambores com toda força. O chefe ordenou que nos desamarrassem e nos levaram diante do seu trono de palha, quando ela limpou com a língua e com os lábios o sangue seco da ferida do meu peito. Então o chefe colocou um colar de sementes no meu pescoço e outro no dela. O meu corpo estava escuro, pintado de preto por causa do barro do lamaçal. O chefe me abraçou e mandou servir aquela carne assada. Comi e ela também, e todos igualmente, aquela carne com um gosto que eu não conhecia, sem tempero, meio adocicada e fomos para uma cabana pequena, que se entendi bem, a partir daquele momento passaria a ser nossa, minha e dela; o nosso lar. Antes, porém, todos os negros e negras, mais as crianças e os velhos apareceram e vieram nos abraçar e tocavam com as mãos os nossos corpos, festejando. Deduzi: me casaram com a negra. Nisso, apareceu uma espécie de feiticeiro e nos defumou com uma fumaça escura de cheiro marcante, porém indecifrável, e me fez engolir uma bebida horrível de tão amarga, me ensinou umas palavras e um jeito de falar com as mãos e me vestiram uma tanga de pele sovada. Me senti especial e me adotaram como irmão. Dormimos na nossa cabana, não sei por quantos dias e noites e sempre tinha na frente da porta umas tigelas de mingau e uns pedaços daquela carne assada. No dia que saímos, as mulheres da tribo levaram ela pra cortar mandioca, eu recebi de presente do chefe uma lança novinha em folha, recém feita e entramos mato adentro. Eu, preto, marcado no peito como todos, me tornei guerreiro também. E o ex-marido da minha negra se fez meu amigo e ficou sendo o meu mestre nas artes e nos ofícios da guerra e da caça. Pensei: melhor assim. Pelo menos não virei carne assada, como aqueles outros que comemos nos últimos dias. Passou o tempo e fiquei morando por lá, bem entrosado com eles. Até achei que era isso mesmo que eu estava precisando. 

Tocou o despertador e não ouvi. Acordei com a voz macia e carinhosa da Cida falando baixinho no meu ouvido: acorda, acorda, senão tu vais te atrasar. Então, levantei arrasado, com vontade de dormir de novo. Afinal, que dias virão sem os meus irmãos selvagens e longe da minha negra indomável. 

Saí de casa melancólico, com uma faísca de saudade por conta daquele efêmero presente, que, como um novelo de fumaça, do nada apareceu, e de manhã cedo, repentinamente me abandonou. 

Sentei na calçada e fiquei observando a força do vento arrancar as folhas das árvores. Depois, no chão, só restaram as pétalas vivas das flores em redemoinho fazendo um bailado triste diante dos meus olhos, que, ali, não encontraram nada que pudesse me responder, se eu havia, na verdade, perdido alguma coisa importante quando a noite passada terminou.

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