quarta-feira, 5 de setembro de 2012

A TRAPAÇA

Início de uma madrugada mormacenta, estava passando na frente de um hotel, que de hotel só tinha a placa, desses bem muquiranas, quando saiu lá de dentro uma mulher gorda, soltando as banhas por cima da saia e as tetas saltando pra fora da blusa. Saiu se coçando, espremendo com a ponta dos dedos os piolhos e pulgas que nela moravam, e chutando com a sandália velha as baratas que se atravessavam no seu caminho.

Resolvi seguir a mulher, que se enfeitou toda para aquele resto de noite. Pobre miserável. Nunca vi arrumação tão pobre, tão feia, tão decadente, tão humilhante. Coitada. Por querer se arrumar bem, ficou ridícula. Fantasiada, com as vestes surradas que usava. 

Andou coisa de três quadras, e eu meio por longe, atrás dela. Até que entrou num boteco; uma espelunca, misto de bar, boate e motel. Mas caindo aos pedaços. Uma imundície 

Fiquei no outro lado da calçada olhando aquele grupo de gente suja, se entorpecendo de cachaça ordinária e vinho de garrafão, naquele antro fedorento. Naquela reunião de aflitos se encontraram uma porção daqueles que perderam: prostitutas decadentes, travestis com barba de um dia, bêbados, jogadores, ladrões, punguistas, malandros, mendigos, estelionatários e vadios de toda espécie. 

E ali festejavam, com aquele jeito grosseiro, estúpido, uns farelos de contentamento que se soltaram das suas supremas desgraças. Davam risadas macabras, ruidosas, grosseiras com as bocas desdentadas. E as putas e os viados com os lábios doentes pintados da cor de sangue. E quem ainda tinha alguns dentes, os exibiam podres, furados, com as gengivas amareladas, sangrentas. 

Os rostos escurecidos, inchados, maltratados pelo álcool, mostrava com que gente se estava lidando.

E as unhas sujas e compridas, parecendo garras de fera. E um cheiro azedo dos líquidos que vertiam corpo afora, se misturando com perfumes vagabundos, mais as fumaças dos cigarros e as outras fumaças, tornava aquele ambiente empestado na principal filial do inferno aqui por cima da terra. 

Falavam aos berros e se empurravam. E gargalhavam por conta de uns ganhos acanhados, mínimos, obtidos como se fosse fortuna. Comemoravam essas pequenas esmolas de alegria que a vida de vez em quando lhes fornecia. 

Diziam com certo orgulho, sobre as vantagens dos logros, das brigas, das facadas, dos furtos, dos assaltos que cometiam. E não se queixavam. Acho que nem se preocupavam com as diferenças. Era assim que tinha que ser, e pronto. Nem se davam conta das gotas de veneno que o diabo colocou em suas almas, quando nasceram. 

Dançavam, pulavam, cantavam, sorriam, assim, irracionais, tipo bicho. E para mostrar quem eram, exibiam feridas inflamadas, talhos e bolhas não cicatrizadas, nas pernas, nos braços, nos sovacos, no pescoço, nas virilhas. Muitos desses ferimentos amarrados com uma tira de pano manchada de pus e sangue apodrecido. Mais as cicatrizes feias, curadas sem cuidado, largas, que pareciam uma estrada sem capeamento. 

As roupas imundas, emporcalhadas de marrom; sapatos velhos, chinelos rotos, e uns de pés no chão. Alguns mijando nas calças, erguiam, estimulados pela música de corno, braços e dedos mutilados e faces marcadas por cortes antigos de navalha, faca ou estilete. 

Quando se observava aquele gingado desajeitado, de fera se balançando, parecia que dentro de cada peito, batia o coração do satanás. Não podia se outra coisa, quando um negro de testa grande, com a boca inteira, mordia, lambia, e tal como um vampiro sem dentes chupava o couro flácido do pescoço suado e grudento de uma crioula meio adormecida, que de olhos fechados se sentia uma princesa. 

Que outra coisa ruim poderia estar ali, quando uma velha gorda fazia sexo em pé, curvada sobre uma mesa com um mulato forte e suado, enquanto um travesti, ou seja lá o que fosse aquilo, beijava a boca de um sujeito com as calças arriadas, que não tinha a mão esquerda. E um grupo de seis homens com os membros pra fora, se encostavam uns nos outros, se medindo, se esfregando, enquanto uma mulher, que já tinha sido bonita um dia, ajoelhada no piso pegajoso, girava o corpo no meio deles, oferecendo a boca salivante, pra saciar e ser saciada, tal uma cadela sem raça entrada num cio desesperado. 

E na frente de um lance de escada, esperavam em fila, uns pares de todos os sexos; alguns já sem roupa, em plena atividade, uma vaga num dos quartinhos pintados de rosa forte, pra se deitarem uns com os outros, aos pares ou em grupo. 

Seria aquilo a busca do amor? Ou um instinto selvagem da carne? Ou os dois? Não achei resposta. 

Enquanto isso no salão, com as mãos lambuzadas de gordura, quatro mulheres obesas comiam desajeitadas, peles de frango e toucinho de porco fervidas numa banha rançosa, que escorria queixo abaixo. E cuspiam e vomitavam no assoalho encardido e por cima do balcão. E se olhavam risonhas, achando tudo bonito. 

Pude ver também, encostada num canto da parede uma mendiga de cabelos claros com a pele toda quebrada, de mãos postas contra a testa, implorando, implorando, desesperada, que o Criador lhe desse aquela morte, que nunca chegava. 

E vi, uma mocinha, menina ainda, a coitadinha, com as faces cravejadas com delicadas pintinhas claras, de cabelos afogueados e com uma fitinha branca passando pelo meio da testa, que deveria ainda gostar de boneca. Que se estivesse numa igreja, passaria por um anjinho, que enganada pela noite e pelo Rei das almas, estava ali, com a boca pintada de um vivo batom vermelho, rubro, quente da cor do sangue, abraçada num bagaceiro daqueles. Perseguida e sendo usada, e tocada em suas partes ainda não completas pelas mãos e corpos daqueles miseráveis, cujo único pecado cometido foi terem nascido sem a chance de serem gente. Ultrajando a sua inocência, se perdendo chão adentro, orgulhosa por ser mulher. Toda faceira, com um brinquinho de fantasia que tinha uma pedrinha branca pendurada, com a intenção de dar um brilho sensual no seu rosto ainda infantil. 


E todos os outros, aqueles que deram certo ou lutavam para acertar, viravam a cara quando passavam diante daquela porta; por nojo e desprezo. 

Viver é um jogo. Mas quem perdeu por tão grande diferença, sem ao menos competir, se pensar, sabe que aquele resultado é inaceitável, injusto. Um escândalo. Dá até pra cogitar que houve uma espécie de trapaça por parte daquele que tem nas mãos o controle dos barbantes, quando fez a distribuição daquilo que se chama de destino. 

Eu havia entrado ali para me certificar que o diabo existe, e que Deus as vezes falha. 

E confirmei as minhas suspeitas, e sai daquele ambiente com a mente turvada e o peito apertado, dolorido. Descrente com o poder das orações e das forças invisíveis, com a energia humana esgotada, querendo luz naquela escuridão. 

E com o estômago embrulhado e o coração retorcido, revoltado por essas inexplicáveis e injustas diferenças, briguei outra vez com Deus. E tomado por uma raiva violenta, botei a mão no bolso do paletó, e atirei o rosário no lixo.

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