quarta-feira, 4 de setembro de 2013

A DESPEDIDA


 “ - Um dia, para continuar vivendo, tive que apagar as lembranças da minha memória. As boas e as ruins. Elas vinham e batiam forte, quebravam a porta e me arrebentavam por dentro. Olhava para os lados, e todos aqueles que me apareciam na mente, estavam distantes ou já haviam morrido. Aprendi a esquecer. Com o esquecimento parei de me sentir culpado e afastei a saudade para longe.”

Foi o que ouvi do Irineu numa conversa que tivemos quando ele enfrentava no leito do hospital, uma terrível doença terminal.

Éramos grandes amigos, e eu sabia dos seus segredos, dos seus desencontros, daquilo que lhe machucava. Conheci o seu calvário e admirava o esforço que fazia para encontrar uns pedacinhos de alegria para continuar em pé, com dignidade.

Domingo, final de tarde, após duas semanas de internação, quando foram embora as últimas visitas, ameacei levantar para sair, vi a sua mão fazendo sinal para eu permanecer.

Ficamos nós dois a sós, quando o Irineu me pediu para chavear a porta do quarto. Obedeci. A seguir, com a minha ajuda sentou-se na cama com muita dificuldade. Apontou para o pequeno roupeiro, de onde retirei uma camisa branca e um terno preto, com sapatos combinando.

“ - É a minha mortalha” - me disse num tom pesaroso. “Mas hoje vou usá-la pela última vez, ainda vivo.” E me pediu para ajudá-lo a vestir-se.

Entendi naquele silêncio o que iria acontecer e não interrompi. Não questionei, não impedi, não censurei e muito menos julguei. Deixei andar. E não me neguei a participar do que viria pela frente. Apenas reuni a devida coragem para aquela derradeira e necessária aventura.

Anoitecia na cidade e o meu amigo ficou em pé, com as pernas frouxas diante do espelho. Arrumou o cabelo, ajeitou o colarinho da camisa, passou as mãos nas lapelas do casaco, enfiou o braço no meu, me olhou com cara de menino travesso, apesar dos seus 50 anos e da doença; fez um sorriso maroto e me disse: “ - vamos?”

“ - Vamos! Claro que vamos! Mas que desculpa esfarrapada daremos na portaria desta ala e para os guardas lá embaixo?” Perguntei.

“ - Não te preocupa com essas bobagens. Já acertei tudo!”

Com muita dificuldade chegamos até o elevador. Era um andar pesado, arrastado, demorado, nervoso, claudicante. E eu nervoso, pensando que aquela espécie de fuga não daria certo. Só me acalmei quando uma moça vestida de branco, ao passar por nós, deu uma piscada de olho para o Irineu. Então entendi que eu não era o único cúmplice naquela humana rebeldia.

Pegamos um táxi, e ele ordenou que fôssemos até o bar onde durante décadas, a nossa turma sempre se reuniu.

Surpresa! O Irineu já havia providenciado os detalhes para aquele momento. Lá estavam todos esperando. Os velhos amigos de uma vida inteira. Éramos mais do que uma família, afinal nós escolhemos e fomos escolhidos uns pelos outros. Entre nós era puro coração, um céu de afinidades, rios de eternas discussões.

Conversamos animadamente em sua volta e ouvimos comovidos ele falar também daqueles assuntos que aprendera a esquecer. Tirou para fora todas as suas dores emocionais. Depois ficou mais leve, com ar sereno; mais mortal. Buscando forças na fragilidade. Falou, sorriu, chorou e choramos todos, abraçados numa imensa comunhão. Recordamos das nossas trapalhadas com as namoradas e da boa boemia que não existia mais. Dos bons e velhos tempos que haviam desaparecido junto com nossas juventudes.

E bebemos e ele também. Tarde da noite, já sentindo dores lancinantes espalhadas pelo corpo e pelos ossos, pediu para voltar para o hospital.

Foi uma despedida difícil, desgraçadamente dolorosa. Sabíamos que se tratava do nosso último encontro, e que o desfecho vinha a galope para buscar o nosso Irineu.

Entramos no táxi e rumamos para o hospital. Desde o guarda da portaria central e os outros funcionários vieram ajudá-lo, com gestos de cortesia, com palavras amáveis, e com uma cadeira de rodas.

Depois no quarto, deitado e medicado, após se negar a retirar o terno preto, segurou firme a minha mão e me falou: “ - obrigado meu velho! Eu sabia que só você teria a coragem e o entendimento para me dar esta alegria. Foi um grande presente, e estou muito feliz. Podes acreditar. Agora é tudo comigo!”

Ainda pediu para que me abaixasse sobre o seu peito, quando recebi um abraço e um beijo no rosto e um sorriso conformado de quem já estava com as malas prontas para partir. E me disse para eu ir para casa. Que agora queria ficar só. Compreendi a intenção, porém sem alcançá-la por inteiro.

No instante que cheguei em casa, tocou o telefone. Suicídio.

O Irineu acabara de se atirar pela janela do quinto andar. Não teve paciência para esperar a chegada do sofrimento da agonia final, que lhe traria a glória do eterno descanso. Foi encontrá-la, ainda pelo caminho.

No velório, batemos palmas para ele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário