sexta-feira, 27 de setembro de 2013

VIDROS FRÁGEIS

Acordei suando no meio da noite, quando no sonho, uma espécie de anjo com quatro asas pretas, pés feitos com cascos bifurcados, olhos vermelhos de brasa acesa e um longo bico adunco de abutre, me disse: 

Pega um saca-rolhas e retira de dentro de cada um o que cada um tem para dar. Mas o quê cada um tem para dar? Interroguei. A frase queria dizer tudo e ao mesmo tempo não dizia nada. Quem são vocês? Me perguntou aquele bicho. São aquilo que pensam ou o pensamento independe dos vossos corpos? Há um outro ser dentro de vós? São dois, então? Ou quatro, cinco, ou mais lutando no interior dos vossos corpos? Que espécie de ser, sois vós? Quem pensam que são? Estava confuso o sonho. Mas foi bem assim que ouvi. 

Pois bem. Vamos adiante. Quem são vocês, afinal? Não sabes? Então, explico, continuou aquela figura: são vocês apenas breves passarinhos que voam com tempo marcado numa régua que vos diz: vão lá. Voem, se refresquem, sintam dores e alegrias, sofram e sonhem, e depois voltem para suas gaiolas; para as mortes que cada um de vocês terá que cumprir..., hoje, amanhã, ontem; desde todos os tempos que já se foram, dos atuais e dos que virão! 

Mais falou o anjo, ou o que fosse aquilo: aí, surge um de vocês, bem desafiador, que diz: “- eu não! Esse assunto não é para mim! Vou me cuidar e escolher ou adiar a época da minha morte.” - Bobalhão! Que bobagem esses cuidados que só enriquecerão os falsos curandeiros e os curadores que em vão te prometerão saúde e vida longa. Vais morrer assado sobre uma grelha, desgraçado. Depois do churrasco pronto, as tuas carnes, teus ossos, teus olhos, tuas partes íntimas, tua alma, serão servidos para os lobos famintos do além, que ficarão mais fortes ao te devorarem, pobre homem medíocre. Que infeliz pretensão a tua, pobre ser; meu transparente vidrinho quebradiço. De onde tiraste tamanho orgulho? Qual o sentido da tua empáfia? Te convence de uma vez por todas, assim, definitivamente, serzinho insignificante: está lá na bíblia, não por ser a Bíblia, mas por ser um livro bem escrito: dez anos mais, dez anos menos; este é o tempo que viverão. É só isto. Esta é, no máximo, a distância que vos diferencia uns dos outros. Pequeninha, não?” 

Ainda aquela sombra me falando: irão vocês todos encher com vossos corpos apodrecidos e seus líquidos fedorentos, todos os cemitérios do mundo. Pestearão a terra, o ar, o mar, as nuvens, com vossas carniças contaminadas por todas as doenças do mundo. Não se deram conta, que vocês são quase nada? Que terão que alimentar aqueles bichos brancos com mandíbulas poderosas, os vermes que roerão até os ossos, as vossas mais escondidas, entranhas? Que essas pequenas feras, em bando, ferverão dentro de vós? Eles que nasceram para vos devorar. E, nasceram vocês, para alimentá-los. E quem pode impedir essa macabra comilança? Quem? Vai, responda! 

Disse mais o bicho no meu sonho: - A morte está sempre vos espiando pela frestas das portas, pelos buracos das fechaduras dos vossos quartos, principalmente no escuro, logo após apagarem a luz. É deste ambiente que ela gosta. Pode ser que ela não te leve desta vez. Aparece só para te escolher, ver se já estás no ponto. Assim, tu não notas, mas ela passa os olhos e as mãos pelo teu corpo. É carinhosa, a morte, com os seus filhos. 

Agora, o estranho gritou comigo: - Quem são vocês? Que força lhes falta, se morrem ainda criancinhas, crianças, adolescentes, jovens ou com algumas décadas vividas? Quem imaginam que são, se morrem em idades que ainda não se deveria morrer? Por que não vivem 300 anos? Por quê? Se são tão inteligentes, tão criativos, tão importantes, tão arrogantes, tão poderosos, então, por que não vencem esta barreira da morte? São feitos vocês, de vidro muito vagabundo, e pensam que são de cristal. Vidrinhos, cacos de vidro que choram, que pedem, que imploram, que prometem fortunas por mais uns poucos anos de vida. Deviam parar com esses desejos bobos, meus vidrinhos frágeis, coloridos artificialmente. 

No sonho que já era quase um pesadelo, aquilo que parecia um fantasma vestido de preto, me cutucou o peito com sua unha comprida e suja de terra, e falou com voz rouca: e logo, quando menos esperarem, vem a doença que enfraquece o forte, que derruba o gigante, aquele que se achava imbatível. Vem a morte que acaba com o vivo, vem um calorão que faz cinza dos vossos esqueletos. E disso que vocês chamam de alma, nada sabem, nada sabem, meus fracos vidrinhos! Essa coisa de alma, pode ser apenas a mesma energia que faz a planta crescer, o boi andar, o corvo voar, a hiena gargalhar. Vocês não sabem de nada. Estão perdidos neste imenso deserto que é a vida. Se desesperam por qualquer pouca coisa. Tenho pena de vocês. Coitadinhos dos meus vidrinhos. E ainda querem que tudo seja do jeito de vocês. Se acham donos dos seus destinos. Não é assim, meu vidrinho? Buscam feito loucos uma recompensa, imaginando a fantasia de viverem outra vida após suas mortes. Quanta ilusão, meus frágeis vidrinhos. Nem vou pronunciar as palavras “perda de tempo”, mas que perda de tempo tudo isso! 

Antes de ir embora batendo suas asas negras, concluiu, dizendo: - escutem, meus pequenos vidrinhos frágeis, vocês são apenas adubo da terra. Esta é a grande missão de vocês, de todos vocês, meus caquinhos. Apenas, para deixá-los crescer, pegar mais volume, recebem sobre suas cabeças, um instantinho de luz; a vida, como vocês gostam de dizer. Ah, e sobre os destinos, no universo, somos dois, os que mandam: - eu e o outro aquele. Aquele para quem vocês tanto pedem. Agora, basta. O que tinha para dizer era apenas isso, meu vidrinho querido. E nada mais. Nada mais! 

Dei um pulo da cama com o corpo todo molhado, sem ter tido tempo de perguntar quem era ele, respirando um cheiro de enxofre que tomou conta do quarto. Mas não me saía da cabeça: meus vidrinhos. Meus caquinhos de vidro. Vidrinhos frágeis. Vidrinhos quebradiços. Vidrinhos coloridos artificialmente... 

Que coisa! Ora vejam só; nós, apenas um vidrinho! Um caquinho de vidro! Um vidro frágil! 

E não é que é isso mesmo!

Nenhum comentário:

Postar um comentário