quinta-feira, 23 de maio de 2013

ZUMBIS, GATOS PRETOS E BODES DE GRAVATA

A realidade completa não está disponível para os olhos de todos. Existem mistérios inacessíveis para aquelas mentes apenas curiosas, tal esta afirmação: os espíritos vagam, e não poucos cadáveres também perambulam entre nós! Os zumbis existem! Os mortos-vivos fazem parte da nossa vida, e vez por outra aparecem diante dos seus escolhidos.

Enquanto isso ouvimos na boca do povo: “... Mas já estão mortos! Agora são apenas restos mortais. E o que são restos mortais senão as sobras da vida? Os refugos inocentes da existência! Assim sendo, forma já se acabaram, perderam a determinação. Não podem mais aparecer, a não ser na nossa imaginação.” Aí é onde reside o engano!

Eu sei que quase ninguém vai acreditar nesta história, mas mesmo assim, por teimosia, vou contá-la. Escutem:

Certa feita, numa tardinha preguiçosa de sábado, estava passando na frente de um cemitério. Não que fosse o meu caminho, mas por andar no mundo da lua, quando me senti impelido por uma força, uma ordem, um chamado, ou seja lá o sentido que aquilo tivesse, a entrar no território dos mortos.

Já era quase noite e quando dei por mim, estava parado na frente de uma sepultura com tampa de fino mármore, que levantou-se com a minha chegada.

Não senti medo quando saiu de dentro da catacumba o cadáver de um senhor, já com idade muito avançada, bem vestido com um terno preto e camisa branca. E a gravata, que também era branca, trazia um desenho estampado, que não entendi o significado, além de um distintivo dourado, na forma de um ramo, cravado na lapela do casaco.

Saiu e ergueu-se na minha frente, com as carnes do rosto se despregando. A garganta estava cortada de fora a fora, os lábios já haviam sido comidos pelos vermes, as mãos e os pés não tinham mais pele. Trazia um buraco profundo na altura do coração, e no interior do ventre que estava aberto, vi um amontoado de bichos brancos, que produziam um estranho som abafado, enquanto famintos, devoravam as suas entranhas, com aquelas mandíbulas poderosas.

Desceu os degraus do túmulo e deu uns passos em minha direção. Estava muito feio o seu estado, e exalava um cheiro podre adocicado, que se impregnou na minha boca. Mas continuei ali parado, inexplicavelmente, sem sentir medo, muito menos nojo, o que seria natural naquela circunstância.

Olhou para os astros que começavam a surgir no firmamento, os identificou e interpretou as posições dos signos zodiacais. E falou umas palavras em código com uma voz gutural, rouca, sufocada, que saia por entre a dentadura exposta, de orelha a orelha. E com o pedaço de língua que lhe restava, assoprava aqueles vermes esbranquiçados que caiam sobre os meus pés, se mexendo e se retorcendo, abrindo e fechando aquelas queixadas em forma de pinça.

Por fim, chegou bem próximo de mim e disse que se chamava Lesbach. Doutor Ivo Lesbach. E que eu deveria ir até a sua casa, na rua das Acácias, nº 33, que lá encontraria, logo que entrasse, aquilo que ele muito necessitava me transferir, e que eu tanto precisava conhecer.

Fui. Era uma casa velha de esquina, pintada de um marrom já desbotado, toda fechada, sem nenhum sinal de vida.

Dei um jeito, forcei portões, janelas e portas até que consegui entrar, quando sete gatos saíram correndo assustados, com uns pedaços de carne podre presos entre os dentes.

Acendi a luz e me deparei com três imensas colunas feitas em estilo dórico, jônico e coríntio cada uma, mais outras duas que não soube reconhecer. E entre elas, sentado numa poltrona de veludo azul, com o espaldar tão alto que mais parecia um trono, empunhando um martelo de

madeira na mão direita, com aspecto de nobreza, o homem do cemitério. Nisso, o doutor Ivo Lesbach convocou os gatos para retornarem; que de pronto atenderam o seu chamado. Ficaram na sua volta, enquanto ele, com a mão disponível, arrancava pedaços de carne dos seus ombros, do braço direito, da nuca, do peito, das pernas, da papada do queixo, e os atirava para aqueles animais de estimação.

Depois, em pé, enfiou a mão cadavérica dentro da barriga e retirou um punhado daqueles bichos que fervilhavam, e os colocou no chão só para o gato preto, que devia ser o da sua preferência. Alisou o lombo do bichano e o chamou de companheiro.

Voltou a sentar, e mandou eu me servir de um conhaque bem amargo na cristaleira e disse o que precisava de mim.

Que os outros seis gatos, que chamou de candidatos ou aprendizes, que não me lembro agora, ficassem por ali se instruindo. Mas o companheiro, aquele enorme e orelhudo gato preto, eu o levasse comigo para a minha casa, e lhe desse toda a atenção e carinho. E que, de sobre a lareira, eu pegasse um livro antigo, aquele que tinha um olho esquerdo gravado com ouro puro, em alto relevo na capa preta de couro, e ficasse com ele. Me disse o Salomão, esse era um outro nome que usava, que naquelas páginas estava contido todo o conhecimento humano a respeito do amor, da beleza, e toda a sabedoria que um homem precisa adquirir na vida, para ser alguém justo e perfeito de verdade. Mas ainda, que eu me atentasse na profundidade das palavras que falam de liberdade, igualdade e fraternidade. Ainda me entregou uma espada de tempos imemoriais, dizendo que somente muito mais tarde, eu entenderia o seu significado.

Feito o pedido, a oferta e a entrega, o velho zumbi levantou-se da poltrona, fez dois ou três sinais com as mãos e pronunciou umas palavras misteriosas, abriu a porta da casa e desapareceu. Sumiu no ar, assim, de repente, como um pássaro que some no céu.

Cumpri as suas determinações e levei o gato, o livro e a espada para casa. E como era inteligente o companheiro; até conversava comigo, principalmente nas tardinhas de sábado, quando me forçava à levá-lo ao cemitério.

Lá, nesses dias, o doutor Ivo Lesbach, levantava um pouco a tampa da tumba e colocava na boca do gato um pedacinho de carne ou pele, que o bicho comia se lambendo.

Assim fizemos durante várias semanas, até que um dia apareceu só os ossos brancos do braço e da mão do morto-vivo, sinal que não havia mais carne. Foi quando o gato preto ficou em pé nas patas traseiras, e apontou, desafiador, as unhas em minha direção, e disse, arrepiando os bigodes: “ - o próximo será você!” - E saltou sobre o meu ombro, arrancando um pedaço de carne com uma forte e inesperada mordida. Cicatriz que carrego até hoje, como prova da veracidade do acontecido.

Num gesto rápido peguei o gato pelo lombo e o atirei para dentro do sepulcro, pelo vão que ainda estava aberto. Ficou lá, bem quietinho, junto com o seu mestre, e acho, que meu também.

Até hoje, anos depois, nas tardinhas de sábado, ainda ouço a voz do gato entrando por baixo da porta: “ - a tua hora está chegando! O próximo será você! Cuidado, muito cuidado com o fluxo e o refluxo das ondas do mar!”

Sei, que um dia ele vai acertar. Mas, tomara que o gato companheiro continue errando, pelo menos por enquanto. Entretanto, por cautela, nunca mais me aproximei das ondas, nem das areias do mar. Vai que vingue a profecia do gato.

Viram só?! Estão todos rindo, debochando, me achando ridículo, pensando que inventei esta história inverossímil. Eu sabia que seria bem assim, tanto é que avisei logo no início desta narrativa.

O certo mesmo, o melhor que se tem a fazer nesses casos do outro mundo, nessas histórias que lidam com o sobrenatural, é a gente ficar quieto e guardá-las em segredo, resistindo a tentação de contá-las à alguém, para não passar por mentiroso.

Mas, por outro lado, sei de certeza, que existe alguém por aí, que vai acreditar em mim. Pessoas, poucas é verdade, aquelas que sabem que nem sempre tudo termina com o enterro do falecido. Pessoas que acreditam que alguns corpos saem de suas covas, se transformam em zumbis e depois perambulam entre nós, com o propósito de terminar alguma tarefa importante, que pela súbita partida, ficara inacabada.

Ah, o livro do conhecimento? Li cinco vezes, sete talvez e desrespeitei a tradição, e não esperei me tornar defunto, para fazer a sua transferência. Ainda vivo, vivíssimo, o passei adiante, para outro que também, dele tanto precisava.

E a espada, quando querem saber da sua serventia, digo, que só recentemente, dia desses, descobri uma das suas utilidades. Aconteceu quando a retirei da bainha de prata, e li, gravada no extenso das duas faces da sua lâmina, a seguinte mensagem: “ meu caro e recente depositário. Tenhas sempre me mente que somos seres frágeis e provisórios. Nosso passeio por aqui é muito rápido. Devemos aprender que temos muito pouco tempo, e que, se não tivermos compaixão pelos nossos semelhantes, fracassamos como homens. Que somente a capacidade de perdoar nos imortaliza. E que é no amor que encontraremos a paz. Fora disso, a serenidade jamais nos visitará. E, não temas a morte. Porque é ela, e somente ela, que haverá de trazer em suas asas, o eterno voo da liberdade. Caso contrário, vagarás e perambularás feito um morto-vivo, até cumprires a lição. No mais, vivas bem e sem medo. Gostes dos teus amigos e das mulheres bonitas e dos bons vinhos, para que a tua vida não se transforme numa vidinha insignificante, parecida com um leve e transparente cisco, que caberá no universo de uma bolha de sabão. Jamais permitas que os teus sonhos sejam tão medíocres como o voo de uma galinha. E quando a mulher da tua vida aparecer, abra a porta do coração e deixe a felicidade entrar.”

Se melhorei com os ensinamentos do livro e com a mensagem escrita na lâmina da espada? Com certeza afirmo que sim. Além do mais, aprendi a respeitar os gatos pretos, e a ter a infinita desconfiança, que todo velho que vejo, vestido com terno, camisa branca e gravata com aqueles símbolos estampados, nas noites de sábado, pode ser outro zumbi, misturando-se no meio das pessoas.

Já me disseram que esses velhos vestidos de negro, pertencem a uma espécie rara de bodes engravatados, disfarçados de gente. Sinceramente, não acreditei muito nessa conversa. Bodes? Ora, bodes não podem ser! Para mim são apenas zumbis quitando alguma dívida ainda em aberto. Alguns, sábios, até, repassando antigos e valiosos conhecimentos.

Mas as vezes desconfiado, me pergunto: mas quem sabe, não seriam eles, espécies da mesma família do gato preto orelhudo, o afilhado do doutor Ivo Lesbach?

Agora, se forem zumbis graduados, bodes camuflados, ou gatos aprendizes e companheiros, não vos assusta. Eles são todos inocentes.

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