quarta-feira, 8 de maio de 2013

O DILÚVIO

Manhã chuvosa. O rio transbordava. As águas barrentas desciam com violência arrancando as árvores das margens. Os ribeirinhos do vilarejo abandonaram suas casas e tontos, vagavam por perto, em vão, à procura de um abrigo. Fazia um mês que chovia. Os campos próximos estavam alagados dando água pela cintura. 

Diziam que era vingança e não havia nenhum Noé por perto; um Moisés que fosse! Desse tipo de gente, ninguém. Os pássaros e as aves migratórias se divertiam revoando em bandos, disputando a grande oferta de alimento. E as pessoas não tinham onde sepultar as crianças, os velhos e os fracos, porque a fome e as doenças também chegaram. Morriam igualmente aqueles que não aprenderam a comer carne crua. As plantações e as lavouras, do mesmo modo desapareceram. 

O cemitério ficou coberto pela enchente. Os cadáveres antigos e recentes, esqueletos e caveiras, e os bezerros recém nascidos boiavam junto com os bichos que não sabiam voar, dando banquete para os urubus e para os outros carniceiros. 

Móveis, panelas, colchões, roupas, quadros de santos e livros de orações flutuavam e se afogavam, emprestando àquela paisagem, a pintura do abandono, da mais pura devastação. 

Os habitantes do lugar, enfim se desapegaram, se uniram em caravana e decidiram subir em direção à distante coxilha para depois chegar até a igreja, e lá com o padre, pedir proteção no salão paroquial. Já que ele não não veio, iriam até ele, pensaram, com um sentimento profundo de falta de auxílio e proteção. 

Caminhada longa no meio daquele aguaceiro, embaixo da chuva impiedosa. Alguns deles, esmorecidos, já haviam ficado pelo caminho. Os outros se mantinham matando peixes a paulada e os comendo do jeito que estavam. Até que chegaram no cerro e depois, em procissão, se foram rumo à igreja. 

O padre quando viu aquele povo molhado e faminto hesitou em lhes dar abrigo. Ficou parado, pensando duas vezes. Foi então que do meio deles surgiu, movido pelo instinto de sobrevivência, pelo desespero e pelo desamparo, o Adão, que apontou uma faca para o pescoço do padre, e o obrigou a abrir, imediatamente, as portas do salão. 

É sempre assim: é nos momentos de situações extremas que surgem os grandes conflitos. É no desesperado esforço pela sobrevivência, que o ser humano expõe as suas virtudes que estavam guardadas, e também, é quando afloram as avarezas escondidas; e os feitos vêm ao mundo. É quando se fabricam as vítimas e se conhece o fingimento. O espanto, a surpresa, o frio, a necessidade, a fome, a coragem e o medo, derrubam os penachos, as fantasias e as máscaras. Nessa hora, fica-se nu. Somos apenas quem somos. É quando somos reais: valentes, covardes ou mesquinhos. É quando mostramos para que nascemos. 

O padre, refeito, quis rezar pelos mortos e para alimentar a alma daquela gente. Antes que começasse o Adão gritou: “ - é fome padre! É fome nas tripas, padre! É fome no corpo, padre! Esse povo está morrendo é de fome, padre! Agora não é hora para conversa. É hora de comer, seu padreco de meia tigela!” 

O Adão, mais um grupo de homens foram até um potreiro atrás da igreja, e abateram as duas vaquinhas e as cinco ovelhas, que por simbolismo, o padre mantinha, mais o burrico que usava nas peregrinações atrás de donativos. 

Quando viu aquela carneação o padre gorducho de rosto rosado, armado de um revólver partiu para cima do Adão, gritando que aquilo era roubo e sacrilégio. E que roubo e sacrilégio eram pecados. E que para essa espécie de transgressão, jamais haveria perdão. Era inferno na certa. E que fossem procurar comida noutro lugar. 

Antes que o padre disparasse a arma, saltaram sobre ele, e uma faca vinda sabe-se lá de que mão, degolou o padre, de orelha a orelha. O sangue se misturou ao dos animais que estavam sendo carneados. 

Nem esperaram terminar de assar aquelas carnes, e comiam e engoliam pedaços inteiros que faziam um caroço na garganta antes de descer rumo ao estômago. 

Faltou carne. Mataram as galinhas, os patos, os gansos, que sapecaram nas brasas e comeram apressados, antes do ponto. 

Faltou carne. Mataram os pombos com as armas de caça que tinham, e os comeram depois de apenas queimá-los levemente por fora, nas labaredas do fogo de chão. 

Faltou carne. Foram na despensa da casa do padre e comeram tudo que ali havia: queijos, salames, marmeladas, figadas, pessegadas, rapaduras, compotas, frutas cristalizadas, passas diversas, castanhas e amêndoas sortidas. E beberam os conhaques, os vinhos e os licores. 

Faltou comida. Foram na horta e comeram tudo que dava para ser aproveitado. Depois foram no pomar e arrancaram todas as frutas maduras. E as nem tanto, também. 

Faltou comida, era muita gente. Precisavam de mais comida. Muito mais. Mais carne. 

O Adão olhou em volta e não viu mais animal nenhum. Enxergou o corpo do padre ali deitado com o talho escancarado na garganta. 

Restou a batina estendida, vazia, ao lado dos couros descarnados das vacas, das ovelhas e do burrico, ali no chão sangrento, cobertos de moscas varejeiras. 

E lá do lado da enchente veio um pássaro, uma pomba, quem sabe, trazendo um raminho verde preso no bico. Quarenta dias depois!

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