sábado, 5 de abril de 2014

A CASTRAÇÃO

O fato aconteceu próximo a possessão dos Linhares, no Arroio do Divisa, região central da província, quando os gaúchos andavam armados com lanças, espadas, adagas, garruchas, boleadeiras, mosquetões e revólveres contrabandeados, e a vida humana era coisa sem valor.

As guerras andavam soltas, e a valentia era produto de ostentação. Toda família era dona de um defunto feito pelo ideal de uma causa, ou por um ato de covardia, ou por não aceitar um desaforo, ou por alguma vingança qualquer. Assim, também era comum na sala das casas das fazendas, o retrato na parede de um bravo e heróico parente para reverenciar. Época de numerosa população de viúvas e uma imensidade de crianças sem pai.

Diversão era tomar canha nos bolichos, puxar carta de baralho, tentar a sorte na volta e meia do jogo de osso, atar carreiras de improviso, farrear com as mulheres da vida e pelear por qualquer motivo. E os desafios eram resolvidos no aço branco, porque durava mais tempo o bailado, feito de idas e vindas, avanços e recuos, giros de corpo, estudo do oponente, gritos de agora te pego; cortes, lanhaços, pontaços, antes da sangria final.

Duelo com arma de fogo era luta sem prazer. Essa modalidade, que ficasse para os fracos, já que bastava um disparo e pronto, sem o necessário preparo do ofício do duelo, da arte que avança aos poucos, lentamente, golpe por golpe, rumo ao desfecho fatal. Até porque matar a bala com arma de fogo, com um tiro à distância, isso qualquer guri recém-saído dos cueiros era capaz. Homem valente, respeitador desses velhos ritos campeiros, matava ou morria no relampeio da lâmina do ferro branco, olho no olho, coração corcoveando, corpo molhado com o suor escorrendo pelos cotovelos, sentindo o cheiro do outro, tendo o dever de matar para não morrer.

Mas o boato já estava feito, até que chegou nos ouvidos do Juvenal Linhares, que a china Laurinda, a sua predileta, andava se deitando com um forasteiro de sobrenome Cardozo de tal, com forte sotaque da banda oriental. Que a Laurinda descia para uns matos próximos do casebre e que por lá aconteciam os desabonos.

Bem que o Juvenal vinha notando que ela já não prestava atenção nas visitas que fazia. Ficava cismado, trocando orelha, depois que ela passou a lhe servir mate com água fervendo. Mau sinal! Mau sinal, matutava o estancieiro.

E o rumor pegava força. Porque os boatos voam com o vento e se espalham aos quatro cantos feito peste. Sobem coxilhas, descem nas canhadas, caem para os varzedos, invadem os matagais, atravessam rios e açudes, vão até as nuvens, ficam mais sujos no banhadal, pegam estradas longas e viajam rumo ao inferno, se amasiam com os demônios e entram pelas janelas, portas e frestas dos ranchos e dos galpões e das casas dos pobres e dos ricos, se esfregam nas camas das prostitutas, entopem os ouvidos dos mexeriqueiros e tomam conta do mundo. E fazem um homem passar vergonha.

Certa feita, o Juvenal com meia dúzia de capangas, encontrou nas barrancas do arroio, o Cardozo, bem faceiro, gabola, cantando uma espécie de letra de milonga ou de um tango, com a alma e as carnes satisfeitas, recém-chegado dos lados da morada da Laurinda. Que um homem nessas horas, ri à toa e canta sem saber por quê.

Cercaram o estrangeiro, manearam o paisano do jeito que se ata um animal. Desmancharam as voltas do chiripá, e o Juvenal com a velha adaga companheira, cortou fora os bagos do castelhano, com talo e tudo. Depois, colocaram o vivente sobre o seu cavalo e ordenaram que se escapasse, que sumisse daquele rincão, daquele sol, daquela lua, daquele céu. Que se escondesse para lá do horizonte.

O Juvenal embrulhou num pedaço de pelego as honras do Aguirre e mandou um peão entregar para a Laurinda com a recomendação que ela se mudasse para bem longe, logo cedo no outro dia, do contrário ela também conheceria o poderio do ferro branco.

Logo que amanheceu, viram a china montada no zaino magro, ao lado de uma carroça que conduzia sua velha mãe, um casal de irmãos menores, mais uns escassos utensílios caseiros, na direção da fronteira com o Uruguai.

O Cardozo, encontraram logo mais adiante, caído ao lado do cavalo com a carneadeira enfiada no peito, na altura do coração.

Que um gaudério que aprecia uma chinoca não pode sofrer a desonra de pagar preço tão caro. Não pode se ver transformado repentinamente, de um esquentado touro femeeiro, em um miserável e inofensivo boi.

Mais um para virar comida de vermes, se os urubus e os cachorros-do-mato não raspassem tudo, até branquear os ossos.

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