sábado, 19 de abril de 2014

O NEGRINHO DE ESTIMAÇÃO

Naquelas estâncias de antigamente imperava o machismo, a autoridade do patriarca e demonstrações de força, poder e valentia. A voz do estancieiro era um trovão divino; uma ordem poderosa, inquestionável, emanada de todos os céus. E as mulheres submissas, a não ser parir e cuidar da casa, quase mais nada podiam. Mas vez que outra se ouvia um grito de liberdade.

Eulália foi obrigada a casar, ainda uma menina, com um fazendeiro já meio passado nos anos. Para ela, um velho. Porque as moças naqueles tempos eram atiradas pelos pais, no colo de um ricaço qualquer. Ele, um sujeito relaxado que andava sujo de poeira e fedendo a fumaça de cigarro fechado em palha de milho. E como macho raramente cumpria sua missão; que para essas lidas do sexo, não era homem muito afeiçoado. A Eulália, coitadinha, estava seca, uma flor murcha por falta de homem. Nem para fazer um filho o velho Amâncio prestava.

Uma mulher numa situação dessas, faz de conta que baixa a cabeça, estuda o campo em volta, se decide e vai à luta. Quem está insatisfeito, de uma maneira ou de outra, sempre dá um jeito de buscar o que precisa. E agora Dona Eulália, ainda jovem, recém-chegada nos 20 anos, já estava cansada de se virar sozinha.

Nessa época não mais havia escravidão. Oficialmente. Mas as estâncias estavam cheias de negros e negras trabalhando por um trapo de roupa, por um colchão duro, por um prato de comida. Na verdade, tudo continuava como antes; o canetaço da Princesa Isabel, na prática, nada transformara.

Tinha o Amâncio mais de vinte negros sob a sua tutela, e entre eles o Pirilo, um negrinho esguio, bem formado de corpo, dentes brancos e faceiro, com pouco mais que 16 anos. Prestativo, cuidava do serviço da casa. Buscar água na cacimba, abastecer de lenha a cozinha, varrer o terreiro, e sorrateiro, espiar os tornozelos brancos e delicados da Dona Eulália, eram suas ocupações. Tornou-se protegido da estancieira, e nele ninguém encostava um dedo que fosse.

Ela não resistiu. Seria desumano exigir que resistisse. Mandava o negrinho para o mato, depois alegando um passeio, descia, e por lá, se satisfazia nas carnes do Pirilo. E gostava do negrinho. Como gostava dele. Pensava que até amor podia ser aquilo.

O coronel Amâncio ficava trocando orelha com aquela, digamos, íntima aproximação. Se queixou, e ela, dissimulada, disse: “ – que bobagem, homem! É meu negrinho de estimação!”

Passa o tempo, ela mantem o hábito de passear de charrete com o Pirilo. Visitavam o fundo dos campos, o rio, as prainhas de água doce. Apreciavam o canto dos passarinhos, o movimento das nuvens, a dança graciosa das borboletas que faziam desenhos coloridos no ar e a liberdade dos animais. E ela apareceu grávida. E nasceu um mulatinho; a cara do negrinho de estimação.

Foi um escândalo na família, na redondeza. A notícia chegou na cidade, virou assunto nos bolichos e barbearias. Até o chinaredo comentava. Não havia quem não soubesse daquele insólito acontecimento.

Um dia ela escutou o velho Amâncio tramando com um negro da sua confiança, que deviam matar o Pirilo e a criança. Que preparasse uma emboscada.

Esperta, ela, a Dona Eulália pulou na frente. Combinou com o Pirilo, que levassem, já no outro dia, para um passeio de charrete até o fundo do campo, no meio do matagal, o coronel Amâncio, alegando uma grande descoberta: o achado de algo que poderia ser, o local onde estaria enterrada uma tal panela de ouro, lendária no lugar.

Foram: o Pirilo, ela e o velho. Lá, por perto da beira do rio, longe de todos, onde só se ouvia o pio das aves, as folhas das árvores farfalhando ao vento e o som das ondinhas da água batendo suave nas pedras. Desceram. Um estampido cortou o silêncio, em seguida mais outro, e mais outro. Os dois primeiros atingiram mortalmente o velho, com um revólver que ela escondia embaixo da saia. O terceiro foi feito também por ela em direção às nuvens, com a própria arma do Amâncio. Não houve quem a quilômetros de distância, não tivesse escutado os três disparos. Pronto, estava construída a tese da legítima defesa.

A Eulália disse para o negrinho: “ – coloca o corpo na charrete. Vamos dizer que ele atirou primeiro e errou. Que eu atirei para salvar nossas vidas. Era ele ou nós!”

Depois a Eulália teve mais cinco ou seis mulatinhos. Um mais bonitinho que o outro, os filhos do Pirilo, que de negrinho de estimação, por essas voltas da carência de uma mulher, se tornou exemplar pai de família e em respeitável fazendeiro.

E amoroso que foi até morrer de velho, com os cabelos branquinhos de anjo. Porque a vida só existe, quando a gente tem um amor inteiro; só nosso.

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