sábado, 12 de abril de 2014

A CHUVA

Da janela olho esta chuva antiga, imemorial. Saio para me molhar. Tomar banho de chuva quando guri era um prazer que eu tinha. É uma alegria que não perdi.

Chuva que cai nos campos, nas florestas, nas lavouras, nos jardins. Que transborda os rios, que inunda as várzeas, que enlouquece os mares. Chuva que oferece o paraíso, chuva que traz a vida e a morte. Chuva que molha a terra que rega a árvore que brota a folha nova que nasce. Chuva que germina a semente, que sacia a sede. Chuva que revigora o verde; que mata a criança e o velho. Chuva que acende e apaga o milagre da vida.

Chuva que purifica nossas peles e almas, que lava nossos pecados imundos. Chuva que limpa as calçadas e ruas podres de urina e fezes dos animais e dos mendigos e dos bêbados e de todos os miseráveis do mundo, que sujam nossos olhos de uma culpa de todos nós.

Chuva que cai de um céu que nem é céu, que é um rio de nuvem de uma água suja que subiu. De uma água que subiu com as nossas impurezas, com nossos fluídos, com nossos vícios, com os nossos nojos; que subiu com nossas dores e mágoas, incertezas e frustrações, e todas as nossas lágrimas. Água que subiu com um punhado de nossas alegrias, gozos e comemorações.

Chuva de um ciclo que leva e traz, para cima e para baixo, nossas desesperanças, nossas melancolias, nossos vivas e o resto da festa que acabou; que leva e traz, incessante, nossos sonhos que teimam em não acontecer, que apenas mudam de lugar, acompanhando as águas da chuva.

Chuva que cai forte e desmancha os catarros verdes com frisos de sangue grudento; fétidos, depositados no chão, escarrados por bocas adoecidas, e mistura essas porcarias com outras águas, com aquelas que vamos beber. Chuva que se junta à toda espécie de imundície, expelida de gente e dos ratos e dos cachorros e dos pombos e dos morcegos e das baratas, que faz um caldo contaminado da água em que vamos nos banhar.

Ainda chove pesado. Por favor não para de chover, chuva forte. Só assim, com tuas águas misturadas com todas as podridões e azedumes da humanidade, nos lavamos uns nos outros e bebemos os licores orgânicos vertidos por todos nós. Somos iguais nesta hora: na hora do banho e da nossa sede. Todos os dias ingerimos e esfregamos em nossos corpos, os líquidos, o pus, os vômitos, os excrementos, as sobras, de bicho e de gente, de cada um que ainda vive. E depois, engolimos o chorume dos cadáveres apodrecidos de todos os seres vivos que já morreram. E ainda nos pesteamos mais e mais com as fumaças e partículas venenosas geradas da combustão no ventre das fornalhas, lançadas ao espaço pelas poderosas chaminés deste tão insano progresso. Poluição esta que o ar recolhe, armazena e nos devolve, toda vez que a chuva cai.

Que fazer? Não temos como escapar. Somos criaturas acostumadas com água escura clareada e até perfumada artificialmente. Ou modificada no interior da pessoa, da mulher, já no leite materno, da nossa sede inaugural.

Não existe uma só gota de água nova sobre a terra. Todo líquido impuro que existe já passou por dentro de nós, menos para o primeiro homem, o fraco do Adão, que bebia água santa e cristalina nas cachoeiras e rios do Éden, aquele ingrato. Porém, desde a povoação até o último recém-nascido, menino vigoroso que tem no sangue a responsabilidade da perpetuação da nossa raça, vai também ele cumprir a missão, de sujar a água que vai subir e depois voltar para banhar o mundo; sempre assim, até o final dos tempos.

E que cresça animado e mais tarde seja um adulto alegre, este guri que chega. Que ao ver cair os pingos mais fortes, abra a porta da casa e saia em direção à rua, para brincar e fazer festa, com o corpo todo molhado, recebendo prazeroso as delícias das águas da chuva. Enquanto é tempo. Notícias dizem que vai piorar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário