quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

PAI JOÃO (um conto infantil)

Era um preto velho gorducho de barba branca e carapinha tão alva como uma flor de jasmim. Parecia ser muito mais do que uma pessoa com seu ar bonachão e sorriso bom. Sentado na frente do rancho olhando a criação, não era apenas um homem que ali estava. Havia nele uma entidade sobrenatural. Eu pensava que fosse um anjo negro, com as asas escondidas dentro das costas.

Um dia eu disse ainda menino: “ – Pai João, queria andar a cavalo, mas não deixaram porque o tempo está de chuva.” Ele olhou para o céu barrigudo de tanta água e tratou de arrumar as nuvens. De uma curva perdida no horizonte, puxou umas branquinhas para cá, empurrou outras cinzentas mais para lá e com um movimento que fazia com os dedos, afastou para bem longe aquelas nuvens bem carregadas. E fez nascer um sol por cima da noite prematura que havia se formado, me olhou e jurou que não mais choveria. “ – Pronto menino, agora pode andar à vontade no teu cavalo!

Outra vez ele soube que eu havia caçado um passarinho com bodoque. Pediu que me chamassem. Parei face a face com o preto velho e escutei aquela voz macia, feita de seda ou de algodão: “ – Nós temos dois bichinhos dentro de nós, um bom e outro mau. Vai vencer aquele que a gente alimentar. Cuida do teu bichinho bom e não mate mais os passarinhos!” Botei o bodoque no fogo do galpão.

Certa feita pedi para ele me falar da sua vida, dos seus pais e avós escravos. Ele me disse que depois que eu crescesse me contaria. Que ainda era muito cedo para eu conhecer essas amarguras da vida.

Gostava demais do Pai João, principalmente quando ele, só para me divertir, mandava o vento parar ou trocava o vento de lugar, fazendo sacudir um pé de figueira na frente do seu rancho. E ficava dando umas risadas gostosas, pelas surpresas que me causava.

Uma vez ele trouxe, não sei de onde, porque ainda era dia, uma estrela gigante cheia de luz para bem pertinho de nós, que quase dava para alcançar com a mão. Mas o que mais me encantava, era quando ele mexia com os dedos daquele jeito que tinha, e desenhava cavalos, vacas e ovelhas, cachorros, girafas e elefantes com as nuvens brancas que brincavam faceiras no ar. Em seguida desmanchava tudo e mandava eu ir para casa, que já estava ficando tarde.

Na última vez que estivemos juntos, ele continuava sentado no seu banquinho e fez um sinal para que me aproximasse. Então colocou aquela mão mágica no meu peito, olhou fundo nos meus olhos e disse gostoso de ouvir, que após a sua morte, de onde estivesse, continuaria zelando meus passos; que sempre cuidaria de mim.

Quase cem anos diziam que tinha o negro velho, que morreu numa noite de tormenta e muita chuva que tomou conta dos campos. Mas mesmo assim, embaixo do temporal tinham que enterrar o corpo do meu amigo. Antes do meio da tarde, cinco ou seis homens da fazenda abriram uma sepultura ao lado da figueira, aquela na frente do seu casebre. Improvisaram um tosco caixão com umas tábuas que sobravam no galpão e trataram do enterro.

Apenas aqueles homens estavam lá e eu também, todo molhado, tremendo o queixo, batendo os dentes uns nos outros, numa mistura de frio e tristeza por aquela morte. Só eu chorava. Foi o primeiro morto por quem chorei nesta vida, e a tarde já terminava.

Quando atiraram a última pá de terra sobre a cova que era um lamaçal, deu um relâmpago que cortou a escuridão ao meio bem na nossa direção, e explodiu um trovão que rompeu com o som da chuva grossa que caía. E mais ninguém viu, além de mim, quando um buraco luminoso se abriu no firmamento, de onde saiu uma voz, a voz dele que somente eu escutei: “ – não te esquece meu filho, só alimenta o teu bichinho bom. O outro, o mau, deixa ele morrer de fome!”

Repentinamente parou de chover e o fim de tarde voltou a ser dia claro, que muito cedo havia anoitecido, e uma nuvem escura que pairava sobre aquela rude cerimônia ficou parcialmente branca, e tomou a forma de um cavalo montado por um preto velho de asas abertas, que em ziguezague subiu, subiu e subiu tanto até se transformar num pontinho na imensidão do infinito, que logo também desapareceu.

Minha alma de menino me avisou que devia ser, de certeza, o Pai João, o meu velho e querido anjo negro, cavalgando nas alturas, tratando de voltar para o lugar de onde veio; procurando a porta do céu.

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