quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O ESTRAGO

A desgraça deve ser ave noturna. Que tal se dar conta deste mistério: é à noite que as notícias tristes ganham vida. É na escuridão que as doenças se agravam. Exemplo: pouca gente morre de dia.

Ninguém está livre de quando antes de abrir os olhos ao acordar, ver-se diante de um pesadelo; de uma falta, de uma morte, de uma tragédia, de um sumiço, de um desaparecimento inesperado.

Foi o que aconteceu com a Maria. Seu companheiro, o Panção, em busca de ares mais amenos, desaparecera para sempre. Sobrou dois filhos pequenos agarrados nas pernas da Maria chorando de fome, mais a pequeninha no colo sugando um leite que não vinha.

Maria naquela vila de gente muito pobre, naquele casebre cheio de frestas e telhas furadas. Maria, dona daquela panela maldita sempre vazia de dignidade que só fervia água, sal, farelo de pão, osso branco e pedaços de papelão e folhas de capim e ervas do mato. Sopa nojenta, poção do inferno!

Maria sem preparo, quase analfabeta, bonitinha até, sem profissão, ouviu da vizinha de saia curta que se pintava quando anoitecia, que corpo de mulher é mercadoria das boas, produto de grande aceitação. Que bastava ficar limpinha, cheirosa e pronto. Era dinheiro na certa.

Botou um vestidinho estampado de girassóis e rosas vermelhas, único que possuía, penteou o cabelo para trás, passou alfazema no pescoço, pegou um ônibus com a outra e foi se oferecer naquela esquina; feira de mulheres baratas. Carne a preço camarada. Prazer vendido a preço de liquidação.

Dois clientes na primeira noite. Três na segunda. Cinco na terceira. Mais ainda nas noites seguintes, porque também voltavam os mais antigos. Vantagens da novidade.

Vendia-se com asco e revolta que ferviam no meio das tripas, mas com a certeza que de fome, as suas crianças não mais morreriam. Até estudariam, se daquele jeito a vida continuasse. Agora, filhos bem alimentados, roupinhas com cheiro de novas. A menina, filha da vizinha passava a noite com elas, assistindo filmes na televisão recém-chegada, em troca de uma notinha, de um batom, de uma pulseirinha; de outra pouca coisa qualquer.

Madrugada, dentro de um carro velho, a Maria apanhou demais de um homem que lhe chamou para conversar. Surra violenta embaixo de gritos de vagabunda. Prostituta. Vagabunda desgraçada! Foi parar na emergência do hospital. Dentes quebrados, rosto deformado, olhos roxos, nariz e boca sangrando. Mais três ou quatro costelas fraturadas e hematomas espalhados pelo corpo. Não morreu esfaqueada porque as colegas do ponto gritaram, se aproximaram em bando e ameaçaram virar o carro do sujeito. Foi despejada na calçada e o carro sumiu na escuridão dobrando a primeira esquina.

Maria chorou, rezou para a outra Maria, aquela lá do céu e perguntou soluçando, porque a Maria Santa lá de cima deixava acontecer esse tipo de coisa com as Marias aqui debaixo. Maldita sina de ser na vida uma força negativa da natureza, que só atraia coisa ruim, queixou-se a Maria para a Maria poderosa, à Maria Nossa Senhora.

Recebeu medicação e curativos e faixas acima da cintura. Sentiu uma coisa ruim, um azedume, um mau presságio, uma intuição repentina cutucando na alma. Abandonou o hospital, chamou um táxi, contou o que se passava e foi embora para a vila. Na frente do casebre muita gente reunida. Tomaram conta da rua de chão batido. Desceu nove ou dez barracos antes do seu. Deu um frio na barriga. Um suor repentino brilhou na testa. Uma lágrima correu de cada olho. A saliva se transformou em serragem por cima da língua. Esquecida das dores, que outra chegava mais forte, acelerou o passo; desviando das pessoas quase correu, porque dizem, e é certo, que coração de mãe nunca se engana .

Encontrou as três crianças que estavam mortas, bem bonitinhas de rosto, anjinhos sem maldade, encostadinhas uma ao lado da outra, em escadinha. Degoladinhas sobre a cama.

Voltou naquela noite, o Panção. Estava feito o estrago.

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