terça-feira, 23 de outubro de 2012

TUDO MEU. TUDO MEU

Lá pelos idos da metade do século passado, numa estância em Verde Vale, tão vasta que não conhecia os limites de suas divisas, lotada de cavalos, ovelhas e tanto boi gordo que nem podia contar, vivia o Juvenal, que fazia um sorriso abobado quando montava o cavalo tubiano e parava bem no alto de uma coxilha, com as botas estirando firme os estribos, firmando as rédeas com a mão esquerda, enquanto que com a direita aberta sobre a testa, fazia aba contra o sol, dando um giro completo com a montaria, atirava as vistas, até o olhar morrer nas lonjuras dos horizontes, pensando orgulhoso: tudo meu. Tudo meu! 

A seguir voltava pra casa, retirava a cama do lugar e deslocava uma tampa de madeira, e arrancava de dentro do buraco um panelão de ferro atulhado de pequenos sacos de lona, com coisa de quilo, cada, lotados até a boca de libras esterlinas, moedas do melhor ouro, que valiam quanto pesavam; e pensava: tudo meu. Tudo meu! 

Morava, o Juvenal, numa casa de leiva, mista com tijolos e tábuas rudes, coberta em parte com capim Santa-fé e o restante com telhas de barro, moldadas sobre as coxas dos negros que ainda estavam acostumados com as subserviências da escravidão. 

Na verdade, este rancho estava muito aquém do que podia; com piso de chão batido, um velho fogão a lenha, umas panelas desgastadas pelo uso, uns pratinhos lascados de porcelana, algumas canecas amassadas de alumínio, mais uns cachorros magricelas, latindo de fome, amarrados num pé de cinamomo. E lá dentro, a miserável da mulher e uma ninhada de filhos: os machos, já nascendo barba na cara, e as fêmeas na idade de usar batom; tratados a laço, grito e judiaria, como se não corresse em suas veias a seiva colorada de sua raça, e sim o sangue machucado dos cativos, e pensava: tudo meu. Tudo meu! 

Os rapazes envergonhados dentro das calças remendadas e pés no chão, e as filhas moças se arrebentando de desejos, com uns vestidinhos puídos de chita, com as estampas desbotadas. Todos embaixo das ordens do seu chicote. 

Nem um boi carneava, nunca, pra botar gosto de carne na boca daquela gente. Carne, mesmo, só de caça e de pescaria, quando os filhos, um negro com mais outros traziam pra dentro de casa. E aquilo fazia uma festa. 

A mulher, dona Tancinha, de família de nome antigo, também domesticada, dava dó, quase não se via. Quando chegava gente, a coitada se escondia lá nos fundos, de vergonha pelos pés descalços, dos panos surrados em que se enrolava, e dos dentes, e dos brincos que não tinha. 

Que homem mesquinho, o Juvenal, que só amealhou, e da vida nada viveu, e que não deixou, por ruindade, ninguém da sua volta viver. Sujeito de alma escura, tal como uma vela ordinária que nunca se presta pra fazer luz. 

E uma tosse antiga foi se chegando mais pra perto, se acostumando, gostando de ficar mais forte, até atirar peito afora uns pedaços de sangue no terreiro. 

Amedrontado, percebeu que a parca estava chegando, e resolveu enfrentar a fera daquela doença endemoninhada que lhe roía o respirador. Apelou não para a ciência dos homens, mas para um Deus que não conhecia. E em silêncio fez promessas para que o Criador não levasse a sua vida ao território do impenetrável mistério. 

Deitado na sua cama, espiando através de uma brecha no sapé, viu os céus da noite se taparem de luto, com umas nuvens negras de fumo se reboleando lá por cima,e se deu por mais fraco ainda, tendo a certeza que coisa muito ruim se aproximava. 

Foi quando deu por si, e resignado, bateu com força nas portas sagradas, e entregou de volta sua triste alma ao Senhor, numa despedida, porque se via no fim. E com o ânimo enfraquecido, com aquela culpa que ataca os moribundos mesquinhos, topou sumir, com a determinação dos que desejam desaparecer definitivamente de cima da terra. 

E para lacrar o desfecho, recaindo na arrogância, só tinha um pedido ao Criador: requeria, que no momento extremo, após o último suspiro, quando encerasse a sua agonia final, o seu nome fosse incluído no rol dos Santos. Se Santos deveras existissem. Caso contrário, aceitaria, até, entrar na listagem daqueles que apenas poderiam ser perdoados. 

Chamado pela morte, porém, um pouco antes de partir, Juvenal se lembrou de raspão, do dia em que veio ao mundo. E chorou. Chorou por conta das durezas do seu destino. Dos fados malditos que sempre carregou, da sina malvada que sempre soube que trazia consigo desde pequeno, tatuada no espírito. Chorou por todos aqueles que logrou e judiou para ter os seus sacos de moedas de ouro entocados embaixo do traseiro. Chorou pela falta de amor,e da trilha de afeto que o seu coração feito de palha seca, jamais percorreu. Chorou por ser mais pedra do que gente. 

Se recordou, nos seus momentos derradeiros, das vezes que tentou trapacear a morte, quando recorreu aos templos de todas as marcas, dos de discursos corretos e dos pilantras, que vendem por todos os preços, fé, salvação e milagres de cura. Lembrou-se, de quando tentou reafirmar, ou fazer surgir, nesses lugares, através de rezas e preces, abaixo de lágrimas forçadas e gritos de bicho, aquela crença que desconhecia, e que tanto necessitava. Precisava, a qualquer preço, para se livrar de tamanho fardo, solidificar as suas convicções, trabalhar a sua alma, para que pudesse ser favorecido por uma providencial obra divina. 

Chegou a acreditar, ainda que com uma ponta de interesse, que o tempo que castiga é o mesmo que suaviza e cura as cicatrizes. Que o mesmo látego que fere, queima e arde, é o mesmo que traz o bálsamo refrescante que fecha e termina com as feridas. 

Que terrível engano, Juvenal! 

Então, lhe sobreveio um instante de lucidez, que trouxe junto um estranho sentimento na alma e sentiu uma reviravolta nos intestinos, um estremecimento na pele do rosto que lhe repuxou os nervos do pescoço, desmanchou e torceu a posição natural dos lábios, e lhe deu o gosto de um rubro sangue que escorria quente e azedo das gengivas, que desceu queimando garganta abaixo, embaçando os olhos com umas névoas fumegantes, jamais percebidas. Era o último aviso. Chegara a hora de embarcar na nave sinistra, que o levaria para um, dos dois mundos desconhecidos. 

Sabia que estava partindo, embora ainda não aperfeiçoado, ainda desprovido do facho de luz, da doce resignação que ilumina as almas daqueles que aprenderam a pedir perdão. 

E num último momento, preso apenas por um tênue fio de consciência, antes de arrebentar o cordão que une esta com a outra vida, apoderou-se de tão grande delírio, que viu diante de si, três anjos agourentos da guarda de honra do diabo, que com suas asas negras ruflavam violentamente,e fabricavam um vento indomável que zunia e acendia, cada vez mais forte, e cada vez com mais energia as labaredas do inferno, que tomavam conta do seu corpo, como se lenha queimando fosse. 

Assim, já se vendo inquilino da casa dos mortos, atingido, também, pela inclemência de uma noite gelada de um inverno tenebroso, desencarnou solitário, com a cara virada pra lua, que brilhava poderosa através da brecha do sapé. 

E, sem ter encontrado uma solução que reparasse a memória antiga, se foi o Juvenal, sumindo pouco a pouco, se afinando, perdendo substância, se transformando em fagulhas incandescentes, em chispas desprendidas das labaredas que o consumiam, que brilhavam como um enxame de faíscas que produziam estridentes estalidos enquanto subiam para o alto. Só restando no terreiro um amontoado de tábuas e sapé fumegantes. 

E não muito longe dali, os seus sacos de moedas de ouro se abriram e pagavam as festas e celebrações de alforria para a desforra dos seus herdeiros, que nem em longínquos pensamentos, cogitaram, nem por um breve átimo do mais minúsculo dos instantes, de prantearem, com uma mísera meia gota de lágrima, a sua morte.

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