terça-feira, 16 de outubro de 2012

O PADRE E O PECADOR

Estava passando por uma fase muito complicada, o Bonifácio. Ultimamente, de uns anos para cá, dedicava-se com afinco numa vida desregrada, dissoluta, pecadora. Pecava demais, o devasso do Bonifácio. Eram tantas as transgressões aos dez mandamentos que ele já sentia vergonha de um dia ter sido batizado. Carregava uma culpa tão pesada que fazia sua cabeça entrar ombros adentro. 

Precisava, o Bonifácio, encontrar uma urgente solução para viver em paz. Foi quando lembrou-se do padre Ambrósio, tido na cidade como um bom homem, porém rigoroso com as coisas da fé, mas que entendia e perdoava feito um bom pai, os desvios dos seus filhos. 

Então decidiu. Iria até a igreja e pediria clemência para as suas travessuras pecaminosas, antes que caísse sobre ele a implacável cólera divina. Se não recebesse o perdão dos céus, só lhe restaria ser assado numa grelha sobre as chamas incandescentes do inferno. E isso não seria bom. Com certeza, não seria a melhor alternativa. 

Numa quarta-feira resolveu que aquele seria o dia ideal para se confessar com o padre Ambrósio, para afastar-se definitivamente dos poderosos castigos do além e sair de dentro dos braços imundos do demônio. 

Tomou um banho, fez a barba, penteou o cabelo e vestiu a melhor roupa; um terno preto, misto de lã e poliéster, uma camisa branca de puro algodão e sapatos pretos de verniz. Perfumou-se como se fosse pra boemia. Antes de sair, parou diante do espelho, palitou os dentes, ajeitou o cabelo com as mãos, alisou as sobrancelhas com as pontas dos polegares, deu um sorriso, e gostou do sorriso que deu, e se foi em busca de um providencial alívio espiritual. 

Assistiu um pedaço da missa, meio sem jeito, com um certo desconforto pela falta de hábito. Tomou coragem e foi para a fila do confessionário, onde só compareciam as velhas e os velhos. Gente que há muito tempo não pecava. Nem em pensamento. De certeza, eram tão puros quanto o Deus pra quem pediam indulto por pecados nunca cometidos, nem imaginados. Estavam ali por costume e pra mostrarem que ali estavam. 

Quando chegou a sua vez, ajoelhou-se no genuflexório com o rosto grudado nas treliças, através das quais o padre ouve as confissões do seu rebanho, abriu a boca, acompanhando o ditado do confessor, de uma antiga oração de apresentação para o Criador, e rabiscou, cochichando no ouvido do sacerdote a sua infinita coleção de pecados, quase todos, mortais. Os veniais, aqueles pecadinhos insignificantes, nem valia a pena contar. Esses modestos escorregões sumiriam sem nenhuma importância, diante daqueles poderosos, que lhe consumiam as estranhas da alma. 

Pode ver o Bonifácio, por entre as finas ripas de madeira cruzadas, que o rosto do padre Ambrósio se espantava, se ruborizava diante de tão escabrosas confissões, que de vez em quando deixava escapar: “ – credo, meu filho. Você fez mesmo tudo isso?” 

Ficou apavorado, o antigo sacerdote, com os pecados do Bonifácio, afinal nem se recordava de quando ouviu pela ultima vez coisas tão feias, até porque, estava acostumado a somente escutar aqueles pecados que nem eram pecados, umas bobagens que saiam das bocas das velhas e dos velhos, que só iam na igreja por carência, por solidão, pra preencher o tempo vazio e morto de suas vidas tristes. Pecador mesmo, daquele tipo, digamos, profissional, fazia muito tempo que não via na sua frente. 

Terminada a longa confissão, o secretário de Deus aqui na terra, proferiu para o Bonifácio, a mais longa sentença de sua vida como clérigo: setenta e cinco padre-nossos, cento e vinte ave-marias, quarenta e dois credos, além de vinte e cinco voltas inteiras no rosário, e de troco, noventa e cinco santo-anjos. 

Levantou-se do confessionário e pensou que todos ali presentes sabiam da enorme pena recebida e foi envergonhado, cabisbaixo para o seu lugar. Ajoelhou-se, tirou uma caderneta do bolso do paletó e um lápis meio sem ponta para anotar as rezas imputadas. Para não se perder nas contas. Assim, rezava e anotava. Anotava e rezava, compenetrado, até que olhou para os lados e viu que a igreja estava vazia. Todos já haviam retornado para suas casas. E faltava muita oração, muitas mesmo, para acabar com o longo estoque da punição recebida. Coisa muito cruel, - pensou. 

Acabou não aguentando tudo aquilo. Era muita humilhação todo aquele rol interminável de orações, mesmo para um pecador contumaz. O padre fora duro demais com ele. Aquilo era reza pra perdoar os pecados da cidade inteira. 

Decidiu ir embora e voltou para a noite, que recém estava começando embaixo de uma lua cheia. Parou no bar de costume, pediu cerveja e cachaça. Porém antes do primeiro gole, fez o sinal da cruz, pediu consolo por ser um mau filho, e que dali pra frente, fosse o que Deus quisesse, ou o que o diabo receitasse, mas enfrentar aquele padre carrasco, nunca mais. 

Depois, já invadido pelos efeitos do álcool, o Bonifácio resolveu, que de outro modo, a sua maneira, pagaria as suas dívidas. Achou melhor, ao invés de rezar todas as rezas do mundo, voltar pra casa, e lá sim, cumpriria os castigos, as expiações, enfim, quitaria a sua sanção divina, convivendo em tempo integral aquela esposa imensa, que passava dos cento e vinte quilos, com todas as suas malévolas brabezas. Não haveria maior punição para ele. 

Voltou para casa resignado e apresentou-se diante da sua feiosa, hostil e amarga mulher, e com a voz pastosa falou: “ – me castiga. Vai, me castiga. Preciso demais usufruir da graça que virá, nascida deste suplício.

E assim, mais um homem se ferrou.

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