sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

VELHO SEM SERVENTIA

No pequeno museu caseiro vejo as gavetas repletas dessas coisas antigas sem serventia, e me lembro dos idosos que andam por aí, trôpegos e inúteis dentro de suas casas, ou tomando sol nas calçadas e praças da cidade.

Os velhos são tratados como se fossem cachorro de estimação. A maioria pior. Alguém os leva no passinho lento e claudicante, ou com suas muletas, andadores ou cadeiras de rodas para um rápido passeio. Disputam espaço com os cães que saem faceiros ao lado dos seus donos. Então, os velhos olham tristes para o chão e se recordam do tempo em que corriam, da época em que eram alegres, dos dias em que eram respeitados; quando eram cidadãos. E devem pensar: “ – os cachorros recebem mais atenção do que nós, porque agradecidos ainda sacodem o rabo.” Sem falar naquela imensidade de idosos que estão abandonados nos asilos, como se fossem cães de rua, recolhidos em um canil.

Qual a finalidade dos velhos, se ninguém escuta o que eles aprenderam com o tanto que já viveram? Ninguém diz: “ – fala vovô! Conta para nós sobre a sua vida, vovô? Nos ensina, vovô!”

Em casa, no sofá da sala, todos dizem para o cachorro: “ – vem cá Totó. Vem cá Totó. Totó pula, brinca, dá latidinhos de felicidades e ganha colo e recebe cuidados de filho. É o Totó um nobre membro da família. Enquanto isso, o velho desnecessário olha para o vazio com o fraldão pesado, cheio de uma merda antiga. E nunca perguntam: “ – tudo bem, vovô?”

Fica o velho atirado numa poltrona assistindo a luz brilhante da televisão ligada. Já se cansaram do velho, que também já cansou de viver. E se questiona o velho, com as suas ideias e o corpo sem préstimos, de peça de museu decadente, que ninguém admira: “ – e essa bendita morte que nunca aparece! Quanta demora, quanta demora!

O velho é o último grito da vida que ninguém quer escutar, muito menos saber das suas aflições. Por um breve instante que seja, da sua imensa dor, vai ver que pensam que ele já nasceu assim; que não foi jovem e ativo um dia. Esquecem que do seu sêmen, vieram todos que ali estão.

Do velho só resta aquele cheiro azedo de gente velha, com aquelas manchas e sinais de gente velha. Com feridas de gente velha. Com urina e fezes secando naquelas pernas flácidas de gente velha. Com aquelas manias de gente velha, mais o sábio conhecimento guardado no baú mofado da sua desusada memória que ninguém aproveita. Vida vazia, sem graça; vida sem sentido.

Sonho bom só para os outros, que esperam a herança que nunca chega, que virá daquele velho que nunca morre.

E pensam sem parar num miserável e criminoso silêncio: “ – morre logo, velho! Morre logo, velho! Vê se defeca menos, velho sem serventia! Deixa a gente descansar! Deixa a gente em paz! Morre vovô! Que estorvo sem fim!”

De vez em quando um vizinho pergunta no hall do edifício: “ – como está o velho?”

“ – Ontem, melhorzinho. Hoje, piorzinho, piorzinho. Um pouco enjoadinho. “ – Responde com um sorriso desmaiado, um dos herdeiros do velho, fazendo carinho na cabeça do Totó.

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