quarta-feira, 21 de novembro de 2012

OS OLHOS DO DR. SPHAUDSEN

Conheci bem Theobaldo Justino Sphaudsen. Advogado competente. Um puro sangue nos confrontos forenses, além de mostrar-se um ser humano espetacular quando não estava incorporado pelos efeitos do álcool. Apresentava-se brilhante nas audiências nas varas criminais e lotava os salões dos tribunais do juri com estudantes de direito e curiosos, que se acotovelavam para assistir a sua performance feita de surpreendentes estratégias, sempre adornada por uma firme e vibrante oratória. Para um réu, ser defendido por Sphaudsen era um privilégio, sinal forte de absolvição, pela reunião dos variados dotes de sabedoria, persuasão e de presença solene que era depositário. E na vida social tinha um sólido conceito por ser dono de um grande coração, que atirava as suas bondades para o mecenato, para a filantropia, para a humanidade. Que invejável imagem desfrutava este homem, apesar de algumas secretas contradições pessoais. 

Toda vez que encontrava com aquele homem alto, forte, culto, educado, de porte majestoso, voz metálica, trajado com esmero eu olhava aqueles olhos sem brilho, imprecisos, que davam a impressão de serem feitos de um frágil cristal prestes a se quebrar, e pensava: que fio, deste instrumento chamado Theobaldo Justino Sphaudsen havia se rompido. Tinha a absoluta certeza que ali, naquele corpanzil, naquela imponência, alguma coisa tocava desafinado. Um som estranho saia por aqueles olhos dúbios. Coisa mínima, quase imperceptível, mas o suficiente para me causar estranheza, um convencimento que ele era um sofredor apesar das aparências dizerem o contrário. Era uma convicção perigosa, temerária, mas eu a tinha. 

Todos elogiavam o seu comportamento, a sua personalidade, os seus feitos. Sabíamos que falávamos de uma pessoas rara, dotada da melhor alma, da melhor inteligência, de um talento maior, dono dos melhores propósitos. De um ser humano que oferecia para a vida uma espécie de pagamento, uma retribuição material por viver de maneira tão esplêndida. Devolvia, tal um dízimo espontâneo as dádivas que fora merecedor. 

Mas, mesmo assim, eu sabia que faltava um elo, um dente na engrenagem para o Dr. Sphaudsen ser tão completo, tal como todos imaginavam. Alguma coisa não se encaixava. Aqueles olhos fugidios ao invés de mostrarem esperteza, para mim indicavam uma fraqueza, um desencontro que afligia a sua alma. 

Certa ocasião com um grupo de amigos e nossas namoradas fomos numa festa, destas, digamos, alternativas, livres, onde havia gente de todas as tribos, de todos os conhecimentos, de todas as atividades, de todas as idades, de todos os sexos. Gente bonita, avançada, de atitudes inovadoras, com disposição para buscar toda espécie de prazer mundano. 

No início, até me senti um pouco deslocado com tanta diversidade. Depois me separei da minha turma e fui circular pelo interior da mansão com a minha companheira, no meio daquela “fauna” humana que festejava a vida, bebendo, conversando animadamente e dançando ao som de músicas tocadas por famoso animador. 

Andamos, bebemos. Um “oi” aqui, outro “oi” ali, e assim fomos passeando entre a multidão, até que encontramos uma antiga conhecida de cabelos pintados de azul, vestida de princesa, com umas saias sobrepostas cheia de babados, com as unhas pintadas cada uma de uma cor, bebendo uma poção vermelha. Falamos, e com ela junto, continuamos o passeio no meio daquela multidão. 

Sentamos os três num degrau da escada defronte a uma sala escura, e ela só falava em disco voador, ETs, vida após a morte, a fragilidade da vida humana, da inevitabilidade do destino, enfim que já nascemos predestinados e mais outras maluquices. 

Na verdade, essa moça, a Suzi, havia sido estagiária, há uns anos atrás no escritório do Dr. Theobaldo, e dele, tinha impressões semelhantes as minhas. Inclusive, enquanto conversávamos, afirmou ter visto circulando pelos salões lotados da festa a figura do notável jurista, esguelhando-se dissimulado próximo as paredes. Assunto que não dei atenção, por achar inteiramente improvável tal aparição. 

Mas, assim, como para comprovar, que com frequência a vida imita as tramas inventadas nos enredos de um romance, a coincidência atirou na frente dos nossos olhos a silhueta do Dr. Sphaudsen, que num canto da sala em frente, no lusco-fusco que ali fazia, beijava enlouquecido um rapaz. Nos cutucamos incrédulos, eu e a Suzi, e continuamos olhando aquela inacreditável cena, e vimos a seguir, o Dr. tirar a calça, deitar de bruços no sofá, e ser possuído pelo garotão. Depois levantou-se, traquejou-se, tirou um maço de notas do bolso do paletó e foi rápido em direção a porta de saída. Ainda pude ver, quando de relance, uma luzinha branca mostrou um sorriso mastigado, meio eufórico, meio criminoso, enquanto ele passava por nós, agarrado numa garrafa de uísque. 

Outro dia, no fórum, encontro o Dr., e perguntei se a festa daquela noite estava boa. 

Me respondeu, olhando com os olhos covardes para o gesso branco do teto: “ - Que festa Dr.. Nunca vou a festas. Sou um homem caseiro, voltado para a família, para a profissão, para a religião, e preocupado em ajudar os necessitados e um obediente fiel da retidão e dos bons costumes. 

Respondi, olhando aquela falsificação: “ - Claro, Dr. Sphaudsen. Devo ter me enganado”. 

Como existem misteriosos e inconfessáveis desejos escondidos atrás de uma grande e sofredora personalidade, depois pensei.

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